Linguagem Guilhotina #16 (V.2) - "Augusto": como escrevi meu mais recente conto publicado?
Making of literário na edição de hoje.
Olá pessoal! Como eu já fiz antes, abro de novo as portas do meu ateliê literário a fim de compartilhar com vocês um tanto do meu processo criativo. Sei que essas conversas sobre “processo criativo” podem ser uma chateação. A próxima de agosto será sobre um tema bem fora de tudo isso, tenho consciência de que ando um tanto autorreferente por aqui… Mas se te agrada ler sobre a escrita criativa na prática, será uma alegria ter a sua leitura hoje.
Desta vez, compartilho o orgulho de ter sido publicado pela bela , editada por Ronaldo Bressane. A Morel, vendida exclusivamente pela internet, é uma publicação na qual sempre quis publicar. A edição na qual publiquei meu conto “Augusto” está bem bonita e, na sua faceta literária, conta com colaborações de Marcelino Freire, Luisa Geisler, André Sant’Anna, Michelli Provensi, Bruno Torturra, Ricardo Terto, J.P. Cuenca, Luiza Leite, Marcelo Montenegro e este que vos tecla.
“Augusto” é minha segunda narrativa inédita planejada para ser publicada em 2024. Além dela, é provável que, até dezembro, outras três narrativas saiam. Dois contos sairão em antologias temáticas sobre as quais não posso ainda comentar. O terceiro conto já é notícia pública. Será um conto de horror cósmico ambientado em Brasília e que sairá no Volume 2 da antologia O novo horror.
Augusto: os três primeiros parágrafos
Como a Morel não tem versão de leitura digital, decidi, antes de falar como escrevi o conto, postar aqui os três primeiros parágrafos dele. Se vocês estiverem com preguiça de ler algo incompleto, podem pular numa boa esses parágrafos e seguir para meu breve relato de como eu o escrevi.
Aqui vai:
“A cada seis meses, em junho e em dezembro, o cadáver do poeta Augusto dos Anjos se levanta do seu túmulo para passear pela nossa cidade. Augusto se levanta do chão numa boa, apesar do seu corpo estar mais ou menos apodrecido. Hoje em dia, a prefeitura e os coveiros do nosso cemitério, quando chega a época do poeta se levantar, tudo preparam com antecipação: a cova é deixada semiaberta, ao lado da qual os funcionários colocam uma roupinha nova, elegante, metodicamente engomada. Em cima da roupa, os coveiros nunca esquecem de colocar um chapéu – preto, pois sabem que a cor agrada ao poeta.
Além das roupas novas, a cidade e os visitantes, quando chega a época do morto passear, deixam ao lado de seu túmulo variados presentes. Cartas de amor, cartas de admiração de leitores, flores, cangaceiros de pelúcia, bonecos de monstrinhos de desenhos japoneses, bonequinhos Funko de filmes de monstro dos anos 80, Bíblias sagradas, chocolates, tamarindos, oferendas.
O que mais chama atenção, contudo, não são esses presentes, e sim a quantidade de livros e manuscritos de livros deixados por dezenas de escritores e escritoras ao lado do túmulo. Todos com dedicatórias tais como “A ti, ó Grande Poeta, essas mal traçadas linhas...” ou “Da minha alma para a sua alma” ou “Espero que gostes e possas levar estas palavras com carinho ao vosso túmulo, Ass.: Fulano”. A quantidade de livros e de manuscritos é tão grande, que a prefeitura cede ao cemitério o único funcionário da única biblioteca da cidade durante essa época do ano.”
Augusto: Making of
A ideia do poeta Augusto dos Anjos voltar de alguma maneira dos mortos é originalmente do meu editor na Morel, Ronaldo Bressane. No começo de 2024, eu saía de um cinema da Augusta com a minha então namorada, quando, ao caminharmos de volta para o estacionamento onde estava meu carro, nos encontramos com Bressane ali no BH Lanches, acho. Desde o ano passado eu e ele conversávamos sobre a possibilidade de eu escrever algo inédito pra Morel. Ao me ver e após nos cumprimentarmos, Bressane apontou para a Augusta e disse: “eu enxergo Augusto dos Anjos caminhando por aqui, subindo ou descendo essa rua”.
A imagem proposta por ele era boa mesmo.
E vinha num contexto bem interessante para a minha imaginação. Primeiro, porque, percebo só neste momento, eu encontrei Bressane, naquela noite, ao sair da sessão do filme Pobres Criaturas, cuja protagonista é uma morta-viva, uma versão feminina do Monstro de Frankenstein. Segundo, porque por uma coincidência eu vinha lendo e relendo Augusto dos Anjos - o poeta paraibano forneceu a epígrafe do meu romance. Está explicado, portanto, porque, alguns meses atrás, eu escrevi aqui na newsletter sobre a poesia dele.
No entanto, apesar do convite ter sido feito em janeiro (ou foi em fevereiro?), eu não consegui achar o conto até meados de junho. Eu gostava da ideia de ver Augusto dos Anjos vagar por aí, porém não visualizava uma história protagonizada na Augusta, ou em São Paulo.
Durante meses após aquela noite na Augusta, três perguntas atormentaram minha imaginação: 1) Como Augusto dos Anjos reaparece para nós?; 2) Onde ele vai vagar?; 3) Qual o foco narrativo da história?. O que se sucedeu foram semanas, depois meses, indo e vindo com essas ideias. Eu simplesmente não encontrava um caminho e isso me trouxe um tanto de angústia neste primeiro semestre de 2024.
Uma das melhores curas para o bloqueio de escritor se chama o desespero do prazo. A data final é essa, você assumiu um compromisso com seu editor, não é legal deixá-lo na mão. Ou a história sai, ou ela sai. Foi no desespero que encontrei a minha. Como Augusto reaparece para nós? Pensei nele como fantasma, pensei nele simplesmente reaparecendo no mundo contemporâneo, até que começou a surgir para mim a imagem dele como um zumbi. A ideia era simples: o poeta que tanto cantou a podridão ressurgiria para nós podre.
Em seguida, achei a resposta por onde ele iria vagar: Minas Gerais. Por quê? Embora fosse paraibano, Augusto dos Anjos morreu em Leopoldina, cidade na qual sua memória é celebrada e na qual ele teve algum conforto financeiro e, quem sabe, felicidade. Quem ler o conto, contudo, não encontrará o nome “Leopoldina”. Dela eu retiro somente a inspiração para compor uma arquetípica cidade do interior brasileiro.
Sim, porque eu realmente via o meu Augusto zumbi no interior do Brasil e não em uma metrópole como São Paulo. Matutei, em seguida, o nível de verossimilhança sociológica do conto: eu ia inserir mineiridade nesse trem que eu tava criando? Minha resposta foi não. Embora eu tivesse conhecido um tanto de Minas recentemente em viagens, não me senti seguro para soar “mineiro". Também, no fim das contas, não me interessava marcar tanto essa identidade. O máximo de cor local mineira que inseri se resumiu a referenciar um pão de queijo.
Quem contaria minha história? Isso me deu um trabalho danado, preciso confessar. Eu fiquei em dúvidas entre fazer Augusto dos Anjos zumbi interagir com uma protagonista adolescente - o conto seria bem focado na jornada dela e contado em primeira pessoa por ela. Ao mesmo tempo, eu pensava em um narrador em primeira pessoa do plural, um “nós” que falava como a voz coletiva da cidade. Fazia anos que eu não usava essa segunda opção de narrador… mais e mais eu me inclinei para esse “nós” narrativo.
Peguei uma antologia portuguesa de contos de Gabriel García Márquez e li alguns deles para me inspirar. Desta leitura, me marcou sobretudo o conto “Os funerais de Mamãe Grande”. Bati o martelo: a partir de uma atmosfera bem gótica, a partir de uma imagem do horror, eu iria na verdade por em prátoca o típico modelo do realismo mágico latino-americano.
Satisfeito (e aliviado), comecei a escrever, em cima de um prazo já duas vezes adiado, prazo que implorei para meu editor. Em poucos dias terminei, revisei e mandei para a Morel.
Augusto: sobre o que eu queria falar?
Para finalizar, as escolhas criativas - Augusto Zumbi, a cidade pequena, o foco narrativo coletivo - foram consolidadas em função daquilo que eu buscava, em parte de maneira intuitiva, debater. Eu sempre escreverei sobre memória. Neste caso, eu queria falar sobre a maneira como lembramos de uma obra literária metaforizando-a no corpo de um escritor, um corpo retornado dos mortos. Eu queria falar também sobre nossa obsessão pelo Eu, pela autoficção, pelas narrativas biográficas, pelo consumo da imagem dos escritores, muitas vezes em detrimento de suas obras. Fazer um Augusto dos Anjos zumbi vagar por uma cidade mineira é outra vez minha forma de afrontar o realismo e afrontar esse gosto tão em voga, outra vez, pelas realidades edificantes.
Outro tema importante, o tema que se tornou obsessivo em quase tudo que escrevi até o momento em 2024, é o da experiência do luto. Seja o luto pela perda do objeto amoroso devido ao término de uma relação, seja o luto surgido pela morte de alguém. Pensei mais uma vez no luto ao escrever “Augusto”, embora com menos foco do que no conto “Anunciação”, cujo making of e leitura convido vocês a fazer aqui. Identifico, finalmente, a questão da metamorfose, outro tema que tem atravessado minha escrita. No conto, penso sobre como a morte enseja a vida, como a perda conduz ao renascimento.
Qual a linguagem usei, vocês me perguntam? O humor e a crônica de costumes. Tenho explorado mais meus talentos para o humor. Não sou totalmente desagradável na convivência pessoal e gosto muito de fazer as pessoas rirem na convivência comigo. Me encanta, por exemplo, se estou me relacionando com alguém e podemos rir juntos, sempre. O senso de humor, que sempre esteve na minha escrita, bem, eu quero deixá-lo mais evidente quando a história a ser contada assim o permitir. Gosto, contudo, de misturar camadas de registros da linguagem. O tragicômico é meu registro favorito. É por isso que “Augusto” começa mais leve, bem no tom da sátira, e ao fim ganha dimensões mais dramáticas, trágicas até.
Por hoje, é só.
Espero que tenham gostado de mais um passeio pelo meu ateliê. Deixem comentários se tiverem curiosidade de saber mais sobre como foi todo esse processo. No fim do mês, volto aqui.
C.
Fiquei muito curiosa com seu conto, por toda essa mistura que vc apresentou. Me pareceu uma ótima maneira de desenterrar o defunto. 📖
Adoro ler sobre como as histórias, de quaisquer tipos, foram produzidas/ nasceram. Conta mais!
Vou procurar o conto pra ler