Linguagem Guilhotina #8 (V.2) - Podridão e Êxtase: por que amo a poesia de Augusto dos Anjos e de Hilda Hilst
Hoje, quero falar com vocês de duas experiências de leitura que mexeram com minha vida: a poesia de Augusto dos Anjos e de Hilda Hilst.
Hoje eu falo de poesia, mas na verdade também falo de amizade. Tenho pensado bastante sobre a noção de amizade. O que seríamos sem os nossos amigos? Eu tenho sido grato a elas e a eles em meses recentes, estejam essas pessoas fisicamente perto de mim, ou não.
Há um amor muito profundo nas amizades, quando elas são genuínas. Existe, da mesma forma, o nosso próprio Eu nelas, porque acredito que um amigo ou amiga carregam consigo um bocado de nós. Não estamos presos nesta mente, neste nosso corpo. Somos imagens e histórias que se expandem ao longo da experiência da vida. Nossa identidade é uma fronteira, muito mais do que uma caixa fechada.
Dentro da ideia de amizade estão as nossas leituras. Eu considero que os livros que leio são meus amigos. Sou, neste sentido, amigo de Augusto dos Anjos, sou amigo de Hilda Hilst. Sou grato pelos poemas que eles legaram à nossa língua, à nossa cultura. A ideia de associar a amizade à leitura, aos livros, à literatura, é bastante antiga. Poetas e pensadores da Antiguidade, por exemplo, já abordavam esta noção. Quero preservar a sabedoria dos Antigos: minhas palavras sobre Hilda Hilst e Augusto dos Anjos serão menos uma reflexão crítica e bem mais uma confissão de amizade. Por que falar dos dois juntos? Porque no final de semana que passou, me dei conta de que comemoramos a efemêride de seus nascimentos.
20 de abril de 1884: o Poeta da Podridão
Conheci a poesia de Augusto dos Anjos em um momento crítico da nossa vida: a adolescência. Eu tinha entre 15-16 anos. Estava no modo plenamente gótico: virgem, melancólico, ensimesmado, atormentado com crises cuja dimensão me pareciam avassaladoras. Me alimentava com muitas doses de quadrinhos e de literatura de horror e estava a ponto de descobrir com plenitude tudo que a literatura e o cinema poderiam me oferecer. Foi nesse momento que, certa tarde em Campina Grande, no colégio Geo Studio, eu ouvi um professor de história declamar um poema de Augusto dos Anjos. Aquilo explodiu minha cabeça. Um poeta brasileiro dizendo aquelas coisas! Ainda mais paraibano, como eu!
Um dos momentos mais importantes de um processo pedagógico são os minutos que sucedem a uma aula que você, como professor, acabou de ministrar. Geralmente você estará na sua mesinha e chegará aquele aluno/aluna querendo conversar contigo, tirar dúvidas. Naquela tarde, finda a aula, lá fui eu falar com meu professor: quem era esse poeta??!! Onde dava pra ler mais???. Por isso, tantos anos depois, quando eu próprio virei um educador, sempre tentei respeitar ao máximo este momento. Confesso até o quanto tem me frustrado que, em semestres recentes, meus alunos e alunas do Mackenzie têm ido conversar pouco comigo após o final das minhas aulas.
Admito que a poesia de Augusto dos Anjos não é para todos os gostos. Ele é um poeta do século XIX perdido no começo do século XX. Carrega consigo um eco de uma aristocracia nordestina falida; parte do seu gosto pela morte e pela escuridão pode ser lido como uma forma de elaborar um requiém por um Nordeste que definhou e nunca mais voltaria a ser do modo como era no passado. Esses dias, conversando com meu amigo Astier Basílio, chegamos à conclusão de que Augusto foi a última voz do século XIX a soar na literatura brasileira.
E que voz era essa? Para quem não conhece sua poesia, trata-se de uma mistura inclassificável de Simbolismo, Naturalismo, Romantismo Gótico e até Parnasianismo. Com frequência, Augusto dos Anjos escreve sobre a morte, sobre a putrefação da matéria orgânica e sobre as angústias de uma subjetividade que se reconhece ínfima diante da imensidão e da experiência do Cosmos. É uma poesia cheia de simbolismos, que muitas vezes expressa tais simbologias, de difícil decifração, pelo uso de um vocabulário científico oriundo da Física, da Química e da Biologia.
Li e continuo lendo a poesia dele desde então. Augusto dos Anjos me ajudou a dar forma ao rio subterrâneo, sombrio, que faz parte da minha subjetividade. Eu não teria uma carreira, eu não teria minha poética, se não tivesse, na adolescência, me apaixonado pela sua poesia.
21 de abril de 1930: Hilda Hilst e as muitas bandalheiras
O Cristhiano da primeira década de 2000 se tornou diferente daquele adolescente tímido e atormentado dos anos 1990. Exemplifico com a música: em parte troquei a angústia das bandas indies que eu ouvia, tipo Belle and Sebastian, Suede, The Cure ou Radiohead, para incorporar um bocado da malemolência dos Rolling Stones e de Caetano Veloso.
Acredito que Hilda Hilst dispensa apresentações devido ao perfil de quem lê esta newsletter, mas se você quiser saber mais sobre ela, este texto do Itaú Cultural é uma boa introdução. Descobri a poesia de Hilda Hilst em um momento de transição importante. Eu tinha há pouco abandonado a possibilidade de uma carreira jurídica (nesse sentido, eu era até então o orgulho da família) e trocado o curso de Direito pelo curso de Letras. Eu vivia um momento, estudando no saudoso Centro de Artes e Comunicação da UFPE, de descoberta de muitas possibilidades da vida relacionadas à vida boêmia e em especial às possibilidades do desejo. Ao mesmo tempo, como minha mente se abriu naquela época com as leituras que eu fazia! Amava ser estudante de Letras e tenho orgulho de ter feito esta escolha. Se nos abrimos para uma vida experimental, porém, isso implica que um tanto de caos passa a nos definir. Vivi muitas experiências incríveis que ampliaram a minha visão de mundo; por outro lado, também fiz várias burradas e nem sempre fui uma pessoa legal.
Neste turbilhão, veio Hilda. Eu começava a viver também, naquela época, a vida cultural e literária do Recife com maior intensidade. Ali, no começo dos anos 2000, houve um resgate de uma série de escritores e escritoras cujas obras voltaram a ser mais acessíveis para os então jovens leitores, como eu. No campo da poesia, dois nomes fundamentais deste processo de resgate foram Hilda Hilst e Roberto Piva.
Com Hilda, foi paixão à primeira vista. Eu devorava não só a sua poesia, como as suas entrevistas. Sua figura anárquica, contraditória, cujas ideias às vezes faziam fronteira com a loucura, me capturou. A sua poesia e prosa são complexas e com muitas facetas. Me atraía em sua obra a dimensão filosófica e sublime, assim como a faceta do “baixo ventre”, vinculada à escatologia e ao sexo, às vezes explícito. A obra de Hilda, portanto, traduzia o processo de reinvenção de mim mesmo que ocorria naqueles anos. As suas ansiedades eram as minhas: sexo, Deus e loucura. Ler uma novela como A obscena Senhora D, ou os seus poemas do livro Do desejo, por exemplo… o quanto eu me reconhecia li naquelas palavras, o quanto me tornei aquelas palavras?
Hilda é este mistério.
Toda amizade implica em gratidão
Enquanto escrevo isso, acredito que este seja um dos textos mais pessoais não somente da newsletter, quanto de boa parte de tudo que já escrevi. Paremos com as “confissões” por aqui, então. Voltando à amizade, sempre acreditei na importância da gratidão. Como não agradecer a você, amigo, amiga?
O mesmo posso dizer para a literatura.
Por quê?
Porque as obras de Augusto dos Anjos e Hilda Hilst não apenas me ensinaram verdades sobre mim e a vida, mas me ensinaram a ler melhor. Cada verso de um poema, cada frase de uma obra de ficção, contêm em potencial uma biblioteca inteira. Ao falar de bibliotecas, não me refiro somente às citações, diretas ou indiretas, que um texto literário faz de outros textos. Me refiro, igualmente, à pedagogia literária contida na literatura. Sim, porque uma boa obra literária nos ensina a ler melhor o passado, o presente e o porvir da literatura. Hilda Hilst, por exemplo, me apresentou a outro autor crucial para mim, Georges Bataille. Pela sua poesia, aprendi a apreciar a lírica latina e medieval, a ideia de mística na literatura e perdi o preconceito com a expressão pornográfica na literatura. Hilda me ajudou a reencontrar Sade, por exemplo.
Augusto dos Anjos, por outro lado, me reapresentou a tudo que hoje entendo como gótico na literatura. A partir dele entendi também o Simbolismo de um Cruz e Sousa sem os estereótipos do que eu tinha aprendido no colégio. Acredito que Augusto me ajudou a compreender o Parnasianismo. Sem seus poemas, não teria compreendido, ou teria entendido de modo diferentes, as flores das Flores do Mal, de Baudelaire. Por fim, ele foi o primeiro fio que me conduziu pelo labirinto da busca pela minha família literária, ou seja, pela busca por aquelas obras, em especial da literatura brasileira, dentro das quais quero sempre fazer parte como autor.
Para encerrar, deixo para vocês um poema de Hilda Hilst e um poema de Augusto dos Anjos.
Um poema de Hilda Hilst
Porque há desejo em mim
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
Um poema de Augusto dos Anjos
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
E vocês, gostam de Hilda Hilst e de Agusto dos Anjos? O que me contam sobre as leituras que fizeram destes dois poetas? Que obras, aliás, marcaram a trajetória de vocês, não só como leitores, mas na vida em geral? A conversa, vocês sabem, continua nos comentários.
C.
amei esse relato.
eu também tive minha fase Augusto dos Anjos, ali pelos 14 anos. que fase! rs
Hilda é uma inspiração na vida adulta.
um brinde a literatura, que é tão preciosa quanto a amizade🍷
Fiquei encantada com esse texto. Escreva de forma pessoal mais vezes, eu adorei!