Linguagem Guilhotina #14 - O festival literário da Pen America - Parte III
Nesta edição, concluo a série de relatos sobre o World Voices Festival. E compartilho duas leituras.
World Voices Festival - Parte III
As duas últimas mesas do festival da Pen America foram para mim as mais fortes. Creio que os autores e autoras demonstraram ter muito a dizer e algumas das ideias que compartilharam com o público foram originais e provocativas. Mas antes de continuarmos a conversa, você já leu as duas postagens anteriores sobre o Festival? A primeira parte pode ser lida aqui. A segunda, aqui neste link.
A obra do jamaicano Marlon James, que hoje mora nos Estados Unidos e é professor de escrita criativa, está no meu radar há anos. Ele é desses autores que tentam conciliar inventividade literária - e linguística - com influências de vertentes populares da literatura, como a Fantasia, o Horror e as histórias de aventuras em geral. Suas obras buscam fazer a ponte entre noções do que supostamente seria escrita “literária” e o universo dos lugares-comuns da literatura fantástica. James parte da tradição literária canônica, mas também da experiência de leitor voraz de Fantasia e quadrinhos, incluindo aí também seu lugar como homem negro e gay.
Na mesa, porém, James atuou como anfitrião para que brilhasse o poeta, romancista e intelectual nigeriano-britânico Ben Okri. Foi um privilégio ouvi-lo. Me chamou atenção a leveza e doçura de Okri, mesmo nos momentos nos quais sua fala assumiu um tom marcadamente político. Okri, uma das vozes mais importantes da língua inglesa contemporânea, estava há anos sem ser editado nos Estados Unidos. Salvo engano, nenhum livro dele saiu no Brasil, ou, ao menos, há anos não é reeditado (me corrijam se eu estiver errado, por favor). Acho que seria muito interessante ter a obra de Okri traduzida no Brasil, assim como vê-lo participando de eventos literários em nosso país - podem confiar, há muito a se aprender quando o ouvimos.
O que ambos debateram daria uma edição da Linguagem Guilhotina inteira a respeito, mas para não passar tantas semanas em um assunto só, destaco um dos tópicos debatidos por ambos. “O que as narrativas literárias ainda podem fazer no mundo, hoje?”, ambos se perguntaram. Para Okri, as narrativas são metamorfos e elas têm como maior relevância o fato de que, com frequência, são “indiretas”, no sentido de que não são obrigadas a narrar os fatos objetivamente; para James, por outro lado, as narrativas podem iluminar os pontos opacos da historiografia tradicional. Ambos convergiram em um ponto: nós, que amamos a literatura, às vezes perdemos a fé na força dela. Os censores, o extremistas, os inimigos da literatura, por outro lado, nunca deixam de acreditar na sua força - por isso, a censuram e buscam destruí-la.
Gostei tanto do romance Terráqueos, da escritora japonesa Sayaka Murata, que um dos meus principais objetivos em relação ao evento era conhecê-la. Como eu estava acompanhado da tradutora dela no Brasil, Rita Kohl, que mora atualmente em Princeton, isso me deu mais forças para vencer a timidez e falar com ela. Semanas após o festival, peguei o livro de contos Life Ceremony e fiquei encantado com o primeiro conto, o único do livro que li até agora. Tenho privilegiado, nas horas vagas, a leitura de romances, porém pretendo voltar aos contos de Murata até o fim do ano. No conto que li, Murata imagina uma realidade na qual passa a ser moda usar roupas e objetos do cotidiano feitos de corpos humanos. Sim, isso é o macabro que a Linguagem Guilhotina gosta.
A mesa foi ótima. O tema proposto pela curadoria e que unia os livros recentes das autoras era o da amizade. Gostei muito da mediação da árabe-canadense Mona Awad, assim como das respostas inteligentes de Kamila Shamsie, autora paquistanesa radicada na Inglaterra. Em 2013, eu fiz um evento com Shamsie em um festival de música na Inglaterra, aproveitando os meus ainda sete segundos e meio de fama por ter participado da antologia da Granta, publicada no ano anterior. Shamsie também participou de uma das antologias da revista na sua versão britânica. Além delas e de Murata, quero me organizar para ler a autora chinesa Yiyun Li, que atualmente é professora de escrita criativa aqui em Princeton.
Murata compartilhou conosco que ela escreve sempre procurando um ponto de vista que parece alienígena. Para a antologia de contos recém-lançada nos EUA, ela se propôs pensar a seguinte pergunta: o quanto do que falamos e nos expressamos pertence originalmente a nós? Kamila Shamsie, por outro lado, ao tratar do tema da mesa, a amizade, defendeu que a atitude mais cruel que podemos ter com alguém que amamos é a total honestidade. Também sobre o tema da amizade, Li nos lembrou de que amigos são pontos de referência existenciais para cada um de nós navegarmos a vida.
Última observação: terminada a mesa, ficou ecoando na minha mente a voz e a entonação de Murata, tanto nas suas respostas, quanto na leitura que fez do seu livro para o público. Eu tenho pensado demais no tema de como a voz biológica dos escritores e escritoras se relacionada com a voz verbal dos seus livros. O que vocês pensam sobre isso? Me contem nos comentários.
👾 O que tenho lido?
Uma leitura que definitivamente me chamou atenção foi uma novela de ficção científica da americana Martha Wells. Chama-se All systems red e é o primeiro volume da série The Murderbot Diaries. Ok, primeiro: as capas me encheram um tanto de preconceitos, além do fato do protagonista se chamar “Murderbot”. Assim, apesar de eu ter visto Wells em listas recentes de autorias recomendadas de ficção científica, eu só peguei o livro pra ler por causa da forte indicação da minha amiga Juliana Gomes, que tem uma newsletter bem bacana. E não me arrependi: Martha Wells constrói uma ótima sátira social, toda calcada no protagonista, um androide antissocial, talvez uma metáfora do autismo e/ou da timidez extrema. O livro é também um comentário sobre capitalismo, relações de trabalho e invisibilidade social. É divertido, ácido, rápido e ainda tem cenas de ação bem urdidas.
Depois, peguei para ler o romance histórico, com tons de horror e fantasia, Lone Women, do americano Victor Lavalle, cuja obra tem sido traduzida no Brasil. Lavalle, assim como o citado James, é outro dos autores contemporâneos que procuram atualizar a literatura fantástica em seus lugares-comuns, ao mesmo tempo buscando aproximar o leitor mais acostumado a ler outro tipo de narrativas dos gêneros do fantástico. Lone Women se passa no começo do século XX e é em essência um faroeste com elementos sobrenaturais. Lavalle parte de uma base histórica real, a da contribuição de mulheres solteiras, brancas e negras, para a ocupação territorial do estado de Montana. O que achei do livro? Uma boa leitura, mas nada empolgante. Achei que a escrita de Lavalle carece de um salto de profundidade, ou inventividade. Não sei se me animo para ler outros dele no futuro próximo.
Ainda não tenho um tema para a próxima edição da newsletter, mas vamos ver o que surge. Aceito sugestões!
Estou no meio do caminho da minha visita aos Estados Unidos e a Princeton e já começo a preparar o meu retorno ao Brasil. Depois do momento mais acadêmico, tenho vivido dias de bastante energia criativa, como eu não tinha desde que escrevi meu último livro.
Nos vemos na próxima semana!
C.
"Nós, que amamos a literatura, às vezes perdemos a fé na força dela. Os censores, o extremistas, os inimigos da literatura, por outro lado, nunca deixam de acreditar na sua força - por isso, a censuram e buscam destruí-la". Esta força -poder, está emergindo com tal magnitude neste século 21, que mal sabemos com lidar com ela. É como a força das marés, a admiramos mas não dominamos objetivamente. E porque a amamos com ela nos impulsionamos para novos estudos, ensaios, pesquisas [matéria da Pen-América, Parte III], aqui cobrindo diversos campos afins; refina talentos e abre janelas para novas percepções e apreensão do nosso gigantesco e intrincado mundo simbólico. Ganhamos todos, toda a humanidade!
Esse livro do Murderbot era tudo que eu precisava, obrigada pela dica!!