Três motivos para você começar a ler literatura fantástica
Ou: uma defesa do fantástico.

Hoje, quero te convidar a pensar um pouco sobre como pode ser legal ler literatura fantástica.
Eu escrevo esta edição da minha newsletter motivado pela finalização da minha mais recente oficina, realizada a convite do recém-criado Instituto Caminhos da Palavra. Com a proposta Escrevendo Literatura fantástica, a oficina consistiu em oito encontros semanais com um grupo muito talentoso de colegas escritores e escritoras. Praticamos, na oficina, a escrita do horror, da ficção científica e do realismo mágico. Terminada a oficina, fiquei pensando se não seria bacana reafirmar, aqui, a minha paixão pela literatura fantástica e por que eu acho que você pode incluí-la no cardápio das suas leituras.
Pausa pedagógica: o que é literatura fantástica, Cristhiano?
Pergunta válida e fico grato por você tê-la perguntado. A resposta é complexa e diz respeito a uma das minhas principais linhas de pesquisa no mundo acadêmico.
A literatura fantástica, ou fantástico, ou insólito ficcional, é um conjunto de narrativas que se define por criar histórias e mundos ficcionais que não seguem as regras tradicionais da literatura realista. Que regras seriam essas? O realismo conta suas histórias a partir do consenso do que seria a realidade. Este consenso é formado tanto pelos modelos explicativos da ciência, quanto pelo nosso senso comum de como, cotidianamente, as coisas funcionam.
Ok. Portanto, o fantástico propõe outras formas de funcionamento da realidade. A fim de criar essas formas, a literatura fantástica lança mão de ingredientes básicos que dão fundamento e funcionamento aos seus mundos inventados. De maneira geral, esses fundamentos envolvem coisas como o sobrenatural (ou a sugestão do sobrenatural), as especulações científicas, o absurdo, o onírico… outros ingredientes podem ser apontados, mas acredito que os citados neste parágrafo dão uma boa ideia.
A literatura fantástica, a partir destes ingredientes, se divide em diferentes vertentes. Por vertentes, quero dizer caminhos criativos. Algumas destas vertentes são o horror, a fantasia, a ficção científica, o realismo mágico, o neofantástico, o afrofuturismo, a distopia, a utopia, entre outros caminhos (ou, em termos mais acadêmicos, gêneros) possíveis.
Três motivos para você ler literatura fantástica
Motivo 1: Vale ler literatura fantástica (no caso, nacional), porque, sinceramente, parte da literatura brasileira realista está chata pra caramba
Acabei de escrever isso e sei que vou soar como aqueles tiozinhos que ficam no YouTube ou nas resenhas dos jornais reclamando que a literatura brasileira atual é uma “farsa”, ou outras bobagens do gênero. Não vou por aí. Vivemos um momento rico e bonito da literatura contemporânea. Inclusive, creio que só daqui a alguns anos teremos o distanciamento histórico para entender a profundidade de vários ganhos que nossa literatura contemporânea obteve em anos recentes. Assim, embora eu não esteja satisfeito com tudo o que leio, a diversidade de obras e autorias é grande o bastante para que eu possa afirmar que vivemos sim um bom momento.
No entanto, quero apontar que cada época tem um conjunto de temáticas e abordagens linguísticas que acabam virando “moda”. Então, muitas vezes eu passo por uma livraria, ou vejo conteúdos de influenciadores que o algoritmo me mostra, ou dou uma olhada na programação de festivais ou nas pautas do jornalismo, e a impressão que me dá é que não só estamos lendo e falando sobre os mesmos livros, mas sobre os mesmos temas e repetindo, temporada após temporada, as mesmas poéticas.
Eu realmente sinto, como leitor apaixonado por literatura brasileira contemporânea e como escritor, um desgaste, ao menos na minha experiência, com não só as estéticas realistas predominantes hoje na nossa literatura, como também com as respostas que estas estéticas têm dado às questões do nosso tempo. Há, por exemplo, uma literatura realista excessivamente bem intencionada e explicativa em dezenas de romances que, todos os meses, chegam às livrarias.
Neste sentido, a literatura fantástica pode resgatar um fôlego e trazer ângulos novos para a literatura brasileira atual. O convite a uma imaginação especulativa pode sacudir a poeira do senso comum e do piloto automático das modas. Maternidade, racismo, o Eu, fake news, extrema direita, gênero (no sentido identitário e não no sentido de gênero literário), violência social - temas fundamentais e que podem revelar novas dimensões experienciais se escritas sob o signo da ciência especulativa, do sobrenatural, ou do absurdo.
Motivo 2: Às vezes, o vampiro quer muito te morder, e você deveria deixar
Com a frase acima, quero dizer o seguinte: há algo de ameaçador na literatura fantástica.
A literatura, não só a fantástica, mas a literatura como um todo, deveria retomar sua vocação perturbadora.
Há hoje em dia toda uma literatura construída ao redor da ideia de “conforto” e de “cura”. Não sou contrário a isso. Compreendo a necessidade social de sua existência (no futuro, quero escrever a respeito aqui). Mas meu ponto é que precisamos voltar a uma literatura do desconforto.
O fantástico é uma poética com profundo potencial para o desconforto.
Em que termos? Em duas formas possíveis.
Primeiro, o fantástico te ensina um outro tipo de contrato de leitura. Boa parte da ressalva dos leitores brasileiros com a literatura fantástica tem a ver com o fato de que nosso público leitor nem sempre está a fim de praticar novos contratos de leitura. Ou seja, estamos acostumados apenas a lidar com um texto de ficção na chave realista. No entanto, é por si só subversivo e, portanto, perturbador, descobrir dentro de nós mesmos a capacidade de pensar outros modos de ler um texto de ficção. Para aceitar uma narrativa de literatura fantástica, precisamos dizer um “Sim” ao extraordinário que compõe os seus mundos. Este exercício do “Sim” é ativo e pede de nós um esforço de construção, em conjunto com a narrativa que vamos lendo, dos mundos e das situações insólitas. Quero reiterar que o “Sim” vai ampliar as estratégias e a profundidade com a qual você lê um texto de ficção.
Segundo, o fantástico transforma, em imagens palpáveis, os movimentos do nosso inconsciente. Toda literatura, em seus diferentes gêneros literários, trabalha com a dimensão do inconsciente. É dessa dimensão, aliás, que a literatura retira parte considerável da sua potência. No caso do fantástico, porém, defendo que essa conexão com o inconsciente, devido à natureza da literatura fantástica, é ainda mais perturbadora, porque é como se o autor e a autora do fantástico habitassem literalmente esse plano paralelo da nossa subjetividade. Habitando-o, essas autorias retiram diretamente deste lugar uma matéria-prima de misteriosa concretude: cenas, personagens e linguagens que traduzem, sem nunca serem totalmente decodificáveis, o lado obscuro que não só existe em nós, mas que nos comanda em boa medida.
Motivo 3: É impressão minha, ou o mundo está cada vez mais estranho?
Homens subindo montanhas em busca do sagrado e da conexão com seu masculino, pandemia, Bolsonaro eleito presidente, maratona de robôs na China, trad wives, bebês reborn, pessoas apaixonadas pela sua própria Alexa: o mundo se tornou muito mais parecido com uma boa história fantástica do que poderíamos imaginar. Delirante, contraditória, ameaçadora, incompreenssível: esta é a realidade contemporânea, cujas transformações são mais rápidas do que podemos dar conta.
Um terceiro motivo, portanto, para lermos literatura fantástica, é porque diante de uma realidade cotidiana cada vez mais “fantástica”, é preciso convidar o fantástico para participar da conversa sobre o contemporâneo. Tanto o fantástico de décadas atrás, cujas intuições anteciparam (ou inventaram?) o tempo presente, quanto o fantástico propriamente contemporâneo, que de alguma maneira está pensando sobre tudo aquilo que estamos vivendo atualmente, têm o potencial de lançar novas luzes para a nossa vivência do tempo presente.
Além disso, há também uma releitura do passado por parte da literatura fantástica. Neste caso, o fantástico olha para a história e tenta metaforizaá-la criando ângulos novos e que nos ajudam a reencontrar nosso passado sob um aspecto renovado.
Bônus:
Além dos motivos 1, 2 e 3, quero enfatizar o quanto a leitura de literatura fantástica é prazerosa. Habitar outros mundos ou outras possibilidades de realidade, apesar de muitas vezes seu potencial desestabilizador, é um prazer por si só. Seja ao lermos um romance que se passa em outro planeta, ou um conto em que a realidade é quase igual à nossa, com algum detalhe apenas de diferença, a literatura fantástica potencializa a vocação geral da literatura, que é a de nos fazer viver outras vidas e outras realidades. E esta vivência nos dá alegria, distração e satisfação.
Estes são meus motivos, este é meu convite. Lembrando, também, o quanto o campo do fantástico é amplo. Dentro do amplo espectro do fantástico, haverá uma obra que se conectará ao que você prefere ler.
Mas será que sou contra o realismo? De modo algum. É por isso que na próxima edição da Linguagem Guilhotina eu farei uma defesa do realismo na ficção. Ou melhor, de determinados caminhos dentro do realismo. Quais? Daqui a algumas semanas volta aqui e te digo.
Espia e espaia - Minha entrevista para o podcast da Universidade Federal de Ouro Preto
Caso você tenha gostado desta conversa, tema sobre o qual tenho falado intensamente nos últimos anos, quero te convidar a dar uma conferida na minha entrevista mais recente. Falei justamente de literatura fantástica e também comentei bastante meu livro Gótico Nordestino.
Quem me convidou e fez a entrevista foi a escritora paraibana Jadna Alana. Pra conhecer o trabalho dela, dá uma conferida no perfil de Jadna no Instagram. Gostei demais da conversa, das perguntas e considerações de Jadna e espero que vocês gostem também.
Quais obras de literatura fantástica vocês gostam ou pretendem ler em tempos recentes? Adoraria conversar com vocês sobre as leituras mais recentes nesta seara. Me falem nos comentários.
Abraços!
C.
Christiano, você bem que poderia fazer uma listinha de recomendações de literatura fantástica nacional. 🫣
Esse ano estou fazendo uma matéria sobre Italo Calvino na faculdade e para meu seminário li 'o visconde partido ao meio', que é genial. Calvino é um grande mestre do fantástico, embora saiba que ele não se classificava assim. Indico demais 💫