Linguagem Guilhotina #6 (V.2) - Carla Madeira e o meu Instagram
Nesta edição, compartilho breves impressões sobre Tudo é rio, de Carla Madeira, e penso um pouco sobre as reações da minha bolha literária a esta leitura.
Mil inscritos! 🍭
Antes de começar, quero só dizer da alegria de termos chegado a mais de mil inscritos aqui. Muito, muito obrigado por me fazerem companhia e por me deixarem menos só neste mundo das letras. A Linguagem Guilhotina começou de forma despretensiosa como uma maneira de, quando estive ano passado nos Estados Unidos fazendo meu pós-doc, tentar me conectar com leitores/leitoras, amigos/amigas, e se tornou uma das formas de produzir conteúdo que mais aprecio fazer. Aliás, terei que novamente voltar aos EUA em uma missão de trabalho acadêmica. Mais adiante, comento com vocês.
Tudo é rio
Hoje, quero conversar com vocês sobre um dos romances de maior impacto na literatura brasileira recente: Tudo é rio, da escritora mineira Carla Madeira. Para quem não conhece o fenômeno editorial, indico esta reportagem. A autora mineira seria o que, num jargão de imprensa que cobre música pop, a gente podia chamar de um sucesso “indie”. Ela, mineiramente?, foi ao longo dos anos comendo pelas beiradas, publicando sua literatura através de editoras independentes, criando um fiel grupo de leitoras entusiasmadas. O ponto de virada aconteceu quando Tudo é rio, cuja edição original é de 2014, passou, junto com outros romances da autora, a ser publicado pela Record. Veio, ao longo de 2021, a explosão: hoje Carla Madeira é grande atração de festivais literários, bienais, vende milhares de exemplares, tem reconhecimento crítico.
No fim de 2020, auge ainda da pandemia de Covid-19, eu fiz uma live com ela no Fórum das Letras de Ouro Preto. Ela estava na iminência de relançar Tudo é rio pela Record e falou disso. Eu, por outro lado, estava no auge da escrita de Gótico Nordestino, que eu só lançaria em janeiro de 2022. Foi um tempo muito difícil aquele final de ano… Mas isso fica para outra conversa. Bom: eu nunca tinha ouvido falar na autora. Ou talvez tivesse ouvido falar vagamente dela como um sucesso do mercado independente, não sei. Fizemos uma mesa bem legal, mediado pela minha querida Sandra Espilotro: para assistir, é só clicar aqui.
No final do ano passado (ou foi no começo deste?), eu concluí a leitura do romance. Nos últimos anos, eu tenho evitado escrever resenhas sobre autores brasileiros contemporâneos, portanto não tinha planejado escrever algo sobre Madeira. Contudo, toda vez que eu posto um story sobre este livro, sou bombardeado com críticas a respeito dele ou da validade de eu tê-lo lido. As pessoas ficam ainda mais chocadas ao saber que sim, eu gostei do romance, embora com consideráveis ressalvas.
A última interação sobre o tema foi esse meme, que postei no meu perfil dias atrás:
O que você achou do livro, Cristhiano?
Como disse, gostei, mas com ressalvas. Para além do gostar, eu tentei criar hipóteses a respeito do seu sucesso. Sou um profissional das Letras e tudo que leio, em especial literatura, acaba atravessado pela minha vivência como escritor, professor e crítico. Logo, foi impossível para mim não pensar sobre os fatores, no texto, que o levaram a tantas pessoas.
Quero comentar primeiro o mais importante: as qualidades. Acho o estilo de Tudo é rio muito envolvente, com um tom de folhetim que eu adoro. Outro mérito de Carla Madeira é o de conhecer profundamente suas personagens. Ela os entende bem e, nos melhores momentos, as transforma em seres humanos vívidos, envolvidos em paixões arrebatadoras. Além disso, Madeira conhece Minas Gerais, conhece o Brasil dos interiores. Devido a circunstâncias de minha vida pessoal, em tempos recentes conheci não só Minas Gerais melhor, como também os mineiros e as mineiras. Isto se tornou um conhecimento importante para mim. Acredito que a vivência me revelou nuances do romance que do contrário não estariam tão evidentes. Foi algo semelhante ao que aconteceu quando reli Eles eram muitos cavalos, outro impactante romance contemporâneo, do também mineiro Luiz Ruffato, tão logo me mudei para São Paulo (para quem não conhece, o romance se passa durante 24h de uma Sampa caleidoscópica).
Carla Madeira conhece bem as suas mulheres. Embora os personagens masculinos sejm interessantes, sua literatura privilegia uma investigação sobre a mulher em todas as suas dimensões. Quando Madeira acerta no mergulho do feminino, temos belas páginas literárias. A complexidade das personagens me levou a lugares surpreendentes em alguns momentos de Tudo é rio. Madeira parece se interessar, ao refletir sobre as mulheres, nas dimensões emocionais e na sexualidade delas, por exemplo. Considero isso um acerto, embora não saiba se as temáticas se mantêm em obras posteriores.
Chego, então, a outro ponto que me agradou no livro: o sexo. Gosto muito do sexo safado de Tudo é rio e do quanto certas cenas têm um tom quase de “opa, não estamos entrando num local perigoso, meio errado, nesta cena de dedada???”. O perigo da sexualidade, a ameaça do erótico, isso precisa estar de volta, com profundidade, em nossa literatura. Várias cenas de Tudo é rio são pornográficas e isso faz bem demais ao livro. Eu não duvido o quanto ler páginas de autêntica putaria e fetiche pode ser, para incontáveis leitoras, uma libertação. Não subestimemos, na recepção deste livro, o poder do sexo. É uma das suas maiores forças.
Fluidez narrativa, construção das personagens, investigação sobre o feminino, pornografia - estes são os pontos fortes de Tudo é rio, na minha avaliação.
No entanto, há problemas consideráveis neste romance, igualmente.
Finalmente, Cristhiano, tu vai falar mal de Tudo é rio! Já ia cancelar minha assinatura…
Tudo é rio é um desses romances nos quais qualidades inegáveis convivem com consideráveis defeitos. Ao longo de suas páginas, Carla Madeira busca construir uma linguagem poética. Infelizmente, com frequência, a sua poesia falha em ser interessante. Ela descamba para o lugar comum, para o lirismo kitsch, ou para imagens que cansei de ver em inúmeros livros ou poemas. Há algo em Tudo é rio que vejo com frequência em livros de estreia, o de forçar, em seu discurso, uma dimensão literária. É como se o autor, ou autora, o tempo todo mostrasse os seus truques mais elaborados em uma tentativa desesperada de dizer “vejam, olhem aqui, isso é Literatura. Com L maiúsculo, sim senhor!”.
Conectada à falha lírica, está uma dimensão oracular no romance. Quero dizer, com isso, que Tudo é rio, além de buscar se conectar com a tradição da prosa poética, tenta também se vincular à literatura sapiencial. A todo instante, o narrador do livro compartilha conosco frases de efeito na maioria das vezes rasas. No começo da leitura, relevei, mas quando passei da sua metade sentia que, toda vez que outro aforismo emergia, ele era como uma âncora enferrujada que emperrava o andamento da minha leitura. Há sacadas interessantes? Sim, mas são menos frequentes do que as frases de efeito superficiais.
Logo, eu penso que Tudo é rio seria um livro ainda melhor se menos preocupado estivesse em ser Alta Literatura. É um livro que não precisa de “sofisticação”, porque ele triunfa quando está visceralmente conectado à vida de suas mulheres. E é através desta conexão dolorosa, suja, imersa nas luzes e sombras de Minas Gerais, que o livro se afirma como literatura. Com L maiúsculo, se você preferir.
Ok, entendi. E por que tanta gente do teu círculo de amigas e de trabalho detesta esta livro? (atenção: spoilers suaves abaixo)
Responderei agora.
O repúdio ao livro foi uma surpresa.
Como eu disse, tão logo postei que lia o livro e gostava, fui bombardeado de críticas tanto ao romance, quanto a mim. Quem se manifestou sobre a autora, quem veio puxar assunto comigo sobre Tudo é rio, foram leitoras e amigas que acompanham meu conteúdo no Instagram.
Eu brinco com minhas amigas dizendo que sou o único homem cis que leu Carla Madeira nesse país. Isso, claro, não é verdade, porém no meu universo literário, não conheço nenhum homem que leu ou tenha interesse em ler a autora (o mesmo ocorre com outra escritora que admiro, Elena Ferrante). Ao dizer isso, não quero me vender para vocês como fofo, feministo, descontruído ou qualquer bobagem do tipo. Sou um quarentão cheio de maus hábitos, com cicatrizes e traumas e em luta com uma criação que foi muito religiosa e machista. Isso implica que eu tenho meus limites - estou cada vez mais consciente deles e não não tenho saco de vender qualquer imagem que não seja quem eu sou de verdade. No entanto, quero chamar atenção para o fato de que o triunfo da literatura neste nosso país é o triunfo das nossas leitoras e das nossas escritoras. Não pode haver debate sobre literatura no Brasil sem que haja uma relação com um debate sobre gênero. Ando bem atento a isso há anos.
O que acontece com Carla Madeira e Tudo é rio? Há uma cena de violência terrível no livro, muito bem escrita, praticada por um personagem masculino. Tal violência move toda a trama. Além das ressalvas mais literárias que pontuei anteriormente, minhas leitoras e amigas me apontam que detestam o fato de que a protagonista do romance perdoa o homem pela violência que ele praticou. Este é o ponto fundamental da controvérsia, na minha perspectiva. O que acho disso? Acredito que, em primeiro lugar, a violência traz muito sofrimento a todas as personagens, inclusive ao agressor. Em momento nenhum do livro o ato violento é exaltado, ou amenizado. Ele é terrível, doloroso, destrói vidas. A violência não é idealizada.
Quando, ao final, a protagonista perdoa este homem, tal gesto é completamente coerente com quem ela é e a Minas Gerais onde ela vive. Às vezes, personagens de romances farão burradas ou cometerão atos terríveis, porém isso não é automaticamente uma apologia de algo tenebroso. É somente a vida. Às vezes, personagens enxergarão as coisas de modo diferente de nós. Isso se chama literatura. Além disso, é preciso exercitar a capacidade de apreciar qualidades de um livro sem que ele precise convergir plenamente com nossa perspectiva política, por melhores que supostamente nossas intenções sejam.
Acontece que Tudo é rio é um livro profundamente religioso. Sim, você leu certo. Tudo é rio é um dos livros mais católicos da literatura brasileira atual. Toda a sua visão de mundo, a construção das personagens, é vinculada ao catolicismo. Não o catolicismo que apoia um Bolsonaro, é claro, e sim o catolicismo popular, mestiço, híbrido, cuja generosidade aprendi a admirar. Da personagem prostituta, que é uma autência Santa da Putaria, até o seu desfecho, quando o perdão é alcançado através do exercício da maternidade, da paternidade e da reconstrução de uma ideia tradicional de família, Carla Madeira construiu uma narrativa alicerçada em valores cristãos-católicos. Isso pode ter ajudado no sucesso do livro, porque a autora parece ter chegado ao perfil de mulheres sobre o qual ela escreveu em seu próprio romance.
Eu concordo com essa visão religiosa do romance? Definitivamente não. Eu teria escrito o final da mesma maneira? De modo algum. Possivelmente eu teria feito a protagonista decepar a cabeça do agressor e cozinhá-la, às gargalhadas com as outras amigas bruxas do seu coven, a fim de servi-la num ensopado aos sacerdotes e políticos de sua cidade. Ou teria escrito, no fim, menos sobre perdão e mais sobre a sedimentação da sobrevivência, da superação do trauma através da reinvenção de si mesma, da reivenção da ideia de família; escreveria sobre como aquelas mulheres retiram, menos de uma família e mais umas das outras, a força para corroer a violência dos machos de sua terra.
Mas Carla Madeira não está “errada”, porque considero o final coerente com o universo do livro, com aquilo que o livro é. O mundo onde vivem as personagens, bem como os valores sociais pelas quais elas vivem sua rotina, de Tudo é rio é o Brasil em sua imensidão, muito mais do que nossos perfis progressistas nas redes sociais parecem revelar.
Conclusões? Acredito que vale a pena levar a obra de Carla Madeira em consideração. Há qualidades a serem encontradas, não tenho dúvidas. Por outro lado, se você não gostou do romance, não há problema também. Com meu texto, não estou dizendo que, se você não gostou do romance, é devido a uma questão puramente ideológica em sua leitura. Eu identifico isso em algumas das leituras com as quais tive contato, mas de longe não são todas.
El jabá és tan gostosito
Pessoal, a partir da segunda semana de Abril, vou ministrar um bocado de cursos. Eu nunca tinha dado tantos cursos assim em paralelo à minha atuação como docente do Mackenzie, mas decidi ganhar mais um bom dinheiro extra este semestre. Além disso, eu de fato acredito no potencial destes cursos, no que eles podem ajudar na busca pela compreensão da literatura por parte dos meus futuros alunos e alunas. Acho, igualmente, que eles serão absurdamente divertidos. Bora estudar comigo? Todos são online. Abaixo, dois dos três cursos que darei já confirmados e ainda com inscrições abertas:
Querem mais informações? É só clicar aqui, para mais infos sobre o curso da Astrolábio, bem como aqui, para mais infos sobre o curso da Lugar de ler.
Também darei, a partir da terceira semana de maio, um longo curso online na Escrevedeira. Este será bastante desafiador, porém estou muito empolgado com ele. Quando tudo tiver confirmado, eu volto aqui. E, por fim, no segundo semestre, darei minha oficina literária, no final do ano, de contos fantásticos na Biblioteca de São Paulo.
Quem por aqui leu Tudo é rio? O que achou da minha leitura? Concorda, discorda, percebe outro ângulo? Deixa um comentário aqui e continuamos nossa conversa, o que acha?
Até a próxima,
C.
Li o livro por recomendação apaixonada da minha mãe, que tem preguiça de ficção e por isso fiquei intrigada. Ela ainda meteu um "e como escritora é muito importante você ler!!!!". Eu li, broxei com o final porque achei forçado - menos sobre a política, e mais sobre uma varinha de condão que resolve tudo. Divirjo (?) total da visão de mundo do romance, mas nem essa questão nem o final anulam que achei muito bem escrito. Lendo dá pra notar esses ingredientes que o fizeram explodir, e que dizem muito sobre o público específico qhe abraçou a Carla Madeira - não é uma crítica, só uma constatação mesmo. Curti seu texto, achei um olhar bem sóbrio e faltam homens falando do trabalho de mulheres dessa forma
Cristhiano, gostei demais da sua leitura, apesar de não ter sido exatamente a mesma que fiz (e que bom, rs). Mas acho que concordamos no ponto principal: as críticas que repudiam o fim da história parecem exigir uma ética que não faz parte da história e das suas personagens. Fiquei um tanto chocada quando descobri que algumas pessoas acusavam a autora de romantizar a violência. Parece que não suportamos mais nos deparar com o errado e o contraditório na literatura! Para mim, que assim como você não amou a linguagem poética, a maior riqueza foi justamente os personagens vivos e cheios de camadas. Enfim, gostei demais da sua leitura e aprendi com ela.