Linguagem Guilhotina #4 (V.2) - Escrever sem esperanças
Compartilho com vocês uma brevíssima experiência de superação de bloqueio criativo.
Queridas leitoras e leitores: embora essa newsletter vá chegar em vossas caixas postais na segunda-feira de manhã, eu vos escrevo no dia anterior, domingo à noite. Comecei a escrever esta carta às 21:37. Escrevo no “calor da hora”, no sentido de que tive uma experiência de escrita sobre a qual achei que valia a pena pensar. A experiência aconteceu faz mais ou menos uma hora. Não é nada demais, nem estou fazendo qualquer alarde em relação a ela. Contudo, por que não me comunicar a respeito?
Esta semana que passou impôs muitos desafios.
Reconstrução de rotina, ressignificações, aprendizados do adeus. Tudo isso faz parte do ciclo da vida. Em um soneto, Camões escreve: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o Mundo é composto de mudança,/Tomando sempre novas qualidades” (o restante do poema é um tanto pessimista, mas vale a pena ler). Ainda em outro poema, nosso sofrido Camões reflete: “Verdade, amor, razão, merecimento/Qualquer alma farão segura e forte,/Porém, fortuna, caso, tempo e sorte/Têm do confuso mundo o regimento” ("Fortuna” está no poema mais no sentido de destino, ou do desdobramento das coisas da vida).
Os tubarões
Logo, a vida não está fácil nem para mim, nem para vocês, nem para Camões.
Para além das tramas do destino, sobre as quais pouco temos controle, outro problema que atormenta a nós, autores, é a do bloqueio criativo. Tenho pensado com frequência a respeito e não recordo se já abordei o tema aqui. Em tempos recentes, matutando minhas ideias, cheguei à conclusão que sou meio parecido com os tubarões no que diz respeito à escrita.
Algumas espécies de tubarões supostamente não podem parar de nadar ao longo de toda a vida. Se parassem de nadar, não conseguiriam respirar embaixo d’água. Pois bem, eu sou assim. Não posso parar de escrever e só há poucos dias aceitei plenamente essa verdade. Tenho que viver imerso nas palavras, ter ao menos um projeto com o qual ocupar meus pensamentos. Não é preciso que seja um projeto de ficção, mas é muito bom se for um de ficção.
Portanto, um bloqueio criativo é algo muito difícil para mim.
Aceitar a necessidade constante da escrita é um progresso em meus 42 anos de idade. Porque isso significa levar a sério toda uma reformulação da rotina e da maneira como toco a vida a fim de contemplar uma necessidade básica: criar com as palavras. Eu passei por um longo bloqueio criativo pouco antes de entregar Gótico Nordestino para meus editores em 2021. Eu saí desse bloqueio apenas no fim de janeiro de 2023. Hoje entendo que 2022 foi um ano inesquecível, embora eu nem sempre estivesse bem de saúde física e psicológica. E quem de nós estava, não é? Mas em parte, minha saúde dependia das palavras…
Não quero que em 2024 eu esteja assim de novo. Partes de 2023 já cobraram seu preço em termos de saúde mental; estou dando, porém, mais atenção a isso, finalmente.
Bloqueios
Como eu compartilhei com vocês, estou escrevendo um romance. No final do ano passado, me dei férias dele, o que é bem saudável. No início do ano, cheguei a retomá-lo, contudo nas últimas semanas eu quase o abandonei. Não conseguia desatar os nós de uma cena, não conseguia mais ouvir a personagem sobre a qual tenho escrito (ela se chama Córdula).
Hoje, depois de passar o dia preparando aulas da graduação, tentei me dar de presente a noite para retornar ao romance. Era quase como a nossa última chance! Se eu não sentisse a conexão com tudo aquilo, seria hora de engavetar. Sentei na frente da tela do computador e nada aconteceu. Nada. A história que existe dentro de mim continuava em seu áspero silêncio. Me levantei da cadeira, andei em círculos pelo meu pequeno apartamento. Depois, me estiquei na rede pendurada na minha varanda. Com um caderno na mão e uma caneta Bic na outra, me pus a rascunhar. Aqui e ali, vieram lampejos.
Daí, me levantei e voltei para o computador. Uma imagem me veio: três mulheres cegas andando de mãos dadas no acostamento de uma BR na Paraíba. Depois, nasceu uma frase. E daí veio o que eu queria compartilhar hoje: eu perdi todas as esperanças. Simples assim. Soltei a mão, mergulhei na história, parei de falar comigo mesmo. Escrevi pelo puro ato de escrever. Sem precisar provar algo a qualquer pessoa que seja. Sem necessidade de responder à crítica. Sem me exibir para que eu possa me sentir amado, ou desejado. Ao meu redor, reencontrei o campo da absoluta liberdade criativa. E o mundo do meu romance, da história que quero contar, me perdoou e abriu suas porteiras novamente.
Escrever sem esperanças é não ter expectativas sobre sua própria escrita. Significou para mim deixar fluir. Significou soltar as rédeas da história, não imaginar futuros leitores, não pensar em contrato de edição, nem de posts nas redes sociais. Significou não se levar tão a sério, nem tentar ter controle sobre tudo. Sem esperanças, eu me diluo no processo - e o resultado final, provavelmente, não é sobre mim, mas sobre o escrito. A literatura ganha uma melhor fatura, estou convencido, quando ela não é o nosso ego.
Há bloqueios criativos que nascem, porque queremos fugir do trabalho a ser feito. Ou porque a literatura exige a compromisso do silêncio, sem o qual não é possível realizarmos o maior desafio de todos: o de estarmos sozinhos, porque só na solidão espessa é possível o exercício de uma vida interior, bem como o cultivar sem finalidades. Escrever sem esperanças é a sobra, é o excesso.
É a energia dissipada como em um beijo de amor.
Assim, prezadas e prezados, eu finalizei o domingo com um senso de libertação.
Não sei se o que acabei de dizer para vocês é útil, porém eu senti a vontade de dizê-lo. Porque este texto implica também na ação que a literatura e toda a arte têm, a ação de recriar-se.
Fico feliz que o romance caminhe. Não sei para onde ele vai. Nem sei se um dia virá a ser publicado.
2024 não sai livro de fição meu, mas saem tanto contos escritos ano passado e que só agora sairão em antologias, quanto contos que ainda escreverei. Quero muito saber o que vocês vão achar deles.
E vocês: quando e como ocorrem seus bloqueios de escrita? Me contem nos comentários.
Até a próxima!
C.
vamos lá, Chris :) gás para escrita!
sobre a pergunta: bom, eu resolvo meus bloqueios criativos lendo. não precisa ser de um gênero específico, desde que seja bom, muito muito muito bom. me dá a força para voltar e encarar o monstro que vai sair para fora.
tem que ter fôlego para olhar o monstro no olho.
Que experiência legal! Depois que publiquei meu segundo livro senti mais forte esse bloqueio do qual você está falando, acho que estava pensando demais no resultado em vez de me concentrar no processo. Torcendo para o romance vingar por aí.