Linguagem Guilhotina #3 (V.2) - Uma vida dedicada ao crime
Edição na qual eu compartilho com vocês meu amor bandido por narrativas policiais.
Não, amigas e amigos, não escrevo esse post de uma sala de interrogatório da Polícia Federal, ou dentro de um QG bolsonarista. Os crimes aos quais me dediquei nestes 42 anos de vida são de ordem lúdica e literária.
Mistérios, rostos tensos imersos nas sombras, comportamentos excêntricos, dilemas éticos, desejos obscuros: é nisto tudo que reside o meu encantamento com as narrativas policiais. Hoje, quero compartilhar com vocês a fascinação e o amor que eu tenho por este gênero.
Primeiro, uma questão de nomenclatura: “policial” é a adjetivação que se consolidou, mas quem sabe uma expressão mais precisa seria “narrativas de detetive”, ou “narrativas detetivescas”. É que temos muitas obras, em diferentes mídias, nas quais personagens investigam crimes sem que elas sejam policiais de fato.
Os elegantes venenos da ficção
Minha relação com as narrativas de detetives começou na infância a partir da leitura de livros da escritora britânica Agatha Christie, uma das autoras que mais vendeu livros no mundo. Eu adorava em especial as histórias de Hercule Poirot, embora também ficasse intrigado com a detetive amadora Miss Marple, talvez a grande criação de Christie, uma idosa aposentada que se dedica a resolver os mais escabrosos crimes.
Eu pegava livros da autora que existiam na casa dos meus parentes, lá em Campina Grande. Uma noite, comecei a ter pesadelos e minha família interpretou-os como resultado da minha leitura daquelas histórias. O remédio encontrado pelos meus pais foi me proibir de lê-las, trauma que carrego até hoje, porque nunca voltei a ler a literatura da grande dama do crime, embora eu sempre veja as adaptações que são feitas de seus romances e contos. Eu devia ter 11 anos quando fui proibido de ler Agatha Christie.
No entanto, o bichinho do policial, do detetivesco, do macabro, ficou inoculado em mim de maneira permanente, como vocês estão cansados de saber. Agora, em 2024, quero reencontrar a obra da autora. Christie faz aquela literatura policial mais cerebral, na qual o(a) detetive é uma máquina de pensar, atuando como uma celebração da racionalidade humana. Nesta vertente das narrativas policiais, o detetive consegue, a partir de seus métodos dedutivos, desvendar um crime. São narrativas elegantes, onde até o mal pede licença para ferir suas vítimas.
À interdição de Christie se somou minha formação mais elitista sobre leitura, que durante muito tempo me guiou. Com isso, quero dizer que eu costumava associar o tempo dedicado à leitura de prosa de ficção não aos gêneros do insólito e ao policial, e sim à ficção considerada “séria”, “literária”, de ordem experimental-realista. Por causa disso, sempre consumi muito mais essas narrativas em mídias audiovisuais e nos quadrinhos, do que na literatura.
O noir, os serial killers e a ficção sobre crime (“crime fiction”)
Mas aprecio também uma tradição posterior à geração de Christie ou de Conan Doyle (lembremos, o criador de Sherlock Holmes). Me refiro a histórias mais “sujas”, mais “sombrias”, nas quais o detetive é uma figura problemática, cujos comportamentos muitas vezes são tão suspeitos quanto os criminosos que ele caça. Enxergo no noir conexões com o horror e com o realismo enquanto ferramenta de crônica social. Foi da tradição do noir que nasceram os filmes tenebrosos sobre serial killers, que fizeram a alegria da minha adolescência nos anos 90. Três clássicos desta epoca nunca saíram da minha cabeça: Instinto Selvagem, O silêncio dos inocentes e Seven.
Um parente do noir é a ficção sobre crime, ou crime fiction, na qual o que temos é na verdade uma crônica ficcional da vida de pessoas em vulnerabilidade social. A crime fiction não precisa de um mistério a ser resolvido, porque ela se interessa em mapear vidas afetadas pelo crime, bem como contar a vida das pessoas envolvidas no crime. Na literatura e cinema brasileiros um obra emblemática da ficção sobre crime é Cidade de Deus.
Dessa maneira, penso que o que define uma literatura policial, ou detetivesca, seja a seguinte dinâmica básica: existe ao menos uma pessoa, fazendo o papel de um investigador, que se depara com um mistério criminal. Esta pessoa investigará este mistério, eventualmente entrando em rota de colisão com ao menos uma outra personagem, que cometeu o crime. Desta maneira, é preciso que exista um mistério, um investigador e uma investigação. Caso não haja, temos muito mais o caso de uma narrativa sobre o crime, do que de uma narrativa policial.
Tem alguma coisa nessa conversa toda que se relaciona com a literatura brasileira?
Sim. E é aqui que eu queria chegar.
A literatura brasileira, ao contrário de outras literaturas, privilegiou o desenvolvimento das narrativas sobre crime em detrimento das narrativas detetivescas. Tenho hipóteses de por que isso ocorreu conosco, mas quero ainda amadurecer essas ideias (e publicá-las em algum lugar que alimente esse monstro que tanto amo e odeio: o currículo Lattes). O fato é que, até décadas recentes, embora existisse uma produção de literatura policial no Brasil, ela era bem mais tímida do que em outros países. De fato, nossa literatura, nossa crítica e, até recentemente, nossos leitores, preferiram consolidar o prestígio das crônicas sobre o crime na literatura nacional. Por outro lado, se leitores, críticos e até autores esnobaram o potencial da narrativa policial, isso não aconteceu com as nossas novelas televisivas, que volta e meia inserem em seus enredos a investigação de um crime, geralmente de homicídio. Sim, eu lembro bem da grande pergunta dos anos 80 em nosso país: “quem matou Odete Roitman?”.
Um divisor de águas nesse questão literária foi a obra do escritor contemporâneo Rubem Fonseca, da qual brotam tanto uma ótima linguagem para o noir brasileiro, quanto uma matriz para a crime fiction. E foi a crime fiction que se tornou uma vertente fortíssima entre nós, em especial dos anos 1990 em diante, com autores como Patrícia Melo, Paulo Lins, Fernando Bonassi, Edyr Augusto, Marçal Aquino, entre tantos outros.
Em tempos mais recentes, porém, a literatura policial brasileira, seja a mais cerebral, ou a mais noir, tem dado ótimos resultados com obras de autores como Luiz Alfredo Garcia-Roza, Luis Fernando Veríssimo, Raphael Montes, Claudia Lemes e Alberto Mussa. Creio haver uma mudança de perspectiva do público brasileiro, que passa a valorizar mais a literatura policial nacional. Além disso, de forma lenta, a universidade brasileira começa a considerar esta literatura como digna de figurar em currículos, ou de ser estudada em pesquisas de pós-graduação.
Por fim, grande autores latino-americanos, como Roberto Bolaño, Ricardo Piglia, Leonardo Padurra, Claudia Piñero, Fernanda Melchior, entre outros, ajudam o leitor brasileiro a reavaliar a relevância do gênero na literatura.
Uma sugestão de leitura: O cavalo cor-de-rosa, de Dorothy B. Hughes
Em 2023, recebi um convite da Harper Collins que soou irresistível: o de escrever um posfácio para um romance policial clássico. Foi um dos primeiros textos que escrevi no meu pós-doc em Princeton e tenho orgulho dele. O livro em questão se chama O cavalo cor-de-rosa e foi escrito por uma das grandes vozes femininas do noir estadunidense, Dorothy B. Hughes. Eu não a conhecia antes do convite, mas depois descobri que suas obras se tornaram adaptações clássicas para o cinema noir, também. Após fazer algumas pesquisas na biblioteca de Princeton e pegar livros da autora emprestados, escrevi o texto.
O livro é ótimo e espero que outras obras de Hughes cheguem ao Brasil.
Ela tem o estilo dinâmico e “direto ao ponto” que é marca de boa parte da literatura policial, porém com momentos líricos de surpreendente poesia. Além disso, existe uma empatia da autora em relação às suas personagens, uma vontade de compreender os tortuosos caminhos que levam alguém a cometer delitos. Outra característica que chama atenção no livro é que ele pode estar no meio do caminho entre o “policial” e a “crime fiction”. Não quero deixar nenhum spoiler, então quem tiver lido e quiser trocar ideias comigo a respeito, a casa é sua.
Quais obras policiais você pretende ler esse ano, Cristhiano?
Quero privilegiar livros brasileiros e latino-americanos. Ou, ao menos, fugir um pouco das obras da língua inglesa, quem sabe também inserir no cardápio autores nórdicos, ou japoneses e coreanos.
No Brasil, quero ler/reler Alberto Mussa e Luis Fernando Veríssimo. Na América Latina, reler os contos policiais do argentino Rodolfo Walsh e pegar alguns dos romances do cubano Leonardo Padurra.
Em termos de escrita, tenho pensado em inserir elementos do policial em projetos futuros. Há mais de um ano, me envolvi no projeto de elaboração de uma série para um determinado canal e me diverti muito, pois o motor de funcionamento da série era o das narrativas policiais. Infelizmente, o projeto estagnou, mas quem sabe o que o futuro reserva. Ficou o aprendizado. Também estou com vontade de trabalhar academicamente sobre o tema… Veremos!
Espero que tenham gostado desta conversa sobre literatura policial.
Me contem se gostam do gênero e o que estão assistindo/lendo. Neste momento, por exemplo, estou acompanhando a nova temporada de True Detective e apreciando. E, na literatura, engatei a leitura do romance policial O senhor do lado esquerdo, de Alberto Mussa. Também recomendo, em especial se você quer uma leitura bem diferente.
Se tiver um bom engajamento e conversa sobre o tema, volto por aqui no futuro com dicas de séries policiais.
Abraços e até março!
C.
também sou fã de histórias detetivescas, como boa menina que começou a ler com a Agatha Christie :) te deixo uma recomendação latina, o escritor uruguaio Hugo Borel também é um nome bem bacana das histórias policiais
Também me apaixonei pela Agatha Christie durante a infância, mas a segui lendo e alguns anos atrás fiz uma jornada por toda a sua bibliografia (exceto as peças de teatro). Este ano volto à Dama do Crime através de um clube de leitura que se propõe a ler trimestralmente um romance de Christie, em ordem cronológica. Se vingar, será um projeto de muitos anos. Mas estou adorando.
(dá pra colocar newsletter e podcast no Lattes, o problema é que não tem Qualis, heheheh)