Linguagem Guilhotina #3 - Pensamentos fragmentados escritos diretamente dos EUA
No qual o autor desta newsletter/blog muda de novo a pauta original e fala direto do seu pós-doc em Princeton, nos Estados Unidos!
Looking for America
As próximas edições desta newsletter não serão escritas da minha casa no centro de São Paulo, onde moro.
Hoje, dia 22/03/23, cheguei nos Estados Unidos, onde vou morar até a segunda semana de Agosto.
Vim fazer meu pós-doutorado na Universidade de Princeton, NJ, sob a supervisão do professor Pedro Meira Monteiro. Minha viagem é financiada pelo MackPesquisa, órgão de fomento à pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Este é um plano que está em minha vida desde o primeiro semestre de 2021. Originalmente, eu deveria ter chegado aqui em Princeton no fim de janeiro, mas uma série de contratempos impediu minha saída. Eu decidi que só divulgaria minha ida quando tudo estivesse certo, por isso muitos amigos e amigas só descobriram minha viagem na véspera do meu embarque. Para vocês terem uma ideia da correria das últimas semanas, eu só consegui meu visto na semana passada, exatamente há 7 dias.
Qual a boa dos Estados Unidos, meu amigo?
Algo muito interessante aconteceu comigo devido ao lançamento e repercussão do meu livro Gótico Nordestino. Aliás, soube esses dias que ele tem sido tema de debate em aulas do curso de escrita criativa da Casa das Rosas. Tanto alunos do curso, quanto seus docentes, têm citado e comentado os contos do Gótico. Isto me deixa imensamente orgulhoso, até porque penso que, em parte, foi também a repercussão do meu livro que me permitiu estar agora em Princeton.
O fato curioso é o seguinte: exceto por um momento específico de quando fiz mestrado em Letras na UFPE, o insólito - o campo onde hoje os estudos acadêmicos brasileiros agregam boa parte das vertentes da literatura não estritamente realista - nunca foi um problema teórico para mim. A literatura insólita, pelo contrário, era um objeto de leitura constante, de inspiração para minha literatura, ou sobre a qual eu volta e meia escrevia a respeito na imprensa. Mas, até recentemente, o insólito nunca me estimulou em termos de pesquisa acadêmica, ou de criação de um curso voltado só para este tema, por exemplo.
E o que mudou?
Eu fiz tantos eventos, acadêmicos ou não, do Gótico Nordestino, que culminaram na minha participação como autor, ano passado, da programação principal da Flip, que precisei constantemente me posicionar teoricamente a respeito do que eu escrevia. Isso me levou a estudar e a me atualizar sobre os atuais debates do insólito. Minha prática como escritor, a repercussão do meu livro, me exigiram uma postura teórica.
Como consequência, passei a encontrar no insólito uma ponto de interrogação muito instigante. Assim, minha proposta de pesquisa aqui em Princeton consiste em pensar ecos de três categorias do insólito em narrativas contemporâneas brasileiras: Horror; Gótico; Fantástico. Como vou exatamente lidar com isso? Focando contos. Para onde vou caminhar? Quero passar abril amadurecendo isto. A partir destas reflexões, e de um curso online que ministrei ano passado na Escrevedeira, estou vislumbrando um possível livro novo teórico.
Mas antes do livro, outros livros
Só que antes deste livro do insólito na literatura brasileira, há outros projetos em mente.
O primeiro é a organização de alguns ensaios e artigos meus para publicação em livro. Existe já uma editora interessada no material.
Eu sempre penso que um livro precisa ter algum narrativa curatorial ao redor dele, não importa qual o gênero no qual ele foi escrito. Para quem não sabe, há mais de quinze anos eu me dedico à crítica literária, dentro e fora da academia. Há anos quero juntar uma parte deste material para publicar em livro. Me faltava um fio da meada. Eu decidi, por enquanto, que eu só vou publicar os meus ensaios que abordem dois temas: literatura brasileira; reflexões sobre crítica literária.
Além disso, e de certa produção acadêmica que preciso realizar como exigência do meu pós-doc, eu quero iniciar os rascunhos do projeto do meu livro novo de ficção. Posso garantir que não será de contos, mas sim uma narrativa longa. Uma novela, ou romance... Acho que estar aqui distante de tudo e de todos, longe da minha rotina, me ajudará muito nisso. Tenho trabalhado em contos inéditos para antologias, assim como finalizei um artigo inédito sobre o insólito, que será publicado como capítulo de um livro sobre o tema. Isso foi possível porque desde fevereiro estou afastado das minhas aulas na graduação e pós-graduação do Mackenzie, onde sou professor. De certa forma isolado nos EUA, morando em uma cidade pequena, de pouco mais de 20 mil habitantes, aposto que consigo encontrar a rotina e o silêncio necessários para seguir adiante, também, com a ficção.
Mas qual era o tema original desta newsletter?
Boa pergunta.
Inicialmente, esta seria uma edição dedicada toda ao horror, com entrevista com meu camarada Oscar Nestarez, que em parceria com Julio França organizou a excelente antologia de contos de horror brasileiros do século XIX Tênebra. Eu também falaria dos bastidores de um conto inédito meu que saiu em uma antologia de Horror da editora Globo. Deixarei isto para as próximas semanas.
Depois, mudei de ideia e pensei em falar sobre o filme Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, grande vencedor, para minha grande surpresa, do Oscar 2023. Eu adoro este filme, foi um dos meus preferidos desta temporada recente. No entanto, percebi que ele gerou algum nível de discussão na internet. Acho que virou moda odiar este filme, mas por motivos que considero equivocados. O debate sobre o qual quero pensar diz respeito a um tema que considero importantíssimo: estamos cientes dos critérios que escolhemos para fundamentar os nossos juízos de valor das obras estéticas que consumimos?
Voltarei a isto, prometo.
Sylvia Molloy
Uma das escritoras que admiro e que deu aula aqui em Princeton foi a argentina Sylvia Molloy. Li recentemente o ótimo livro de ensaios dela chamado Figurações - Ensaios críticos, lançando no Brasil pela Editora 34. Uma das coisas que gostei dos ensaios de Molloy é o fato de que seus textos são um ótimo exemplo de como realizar um debate sobre gênero e sexualidade, tomando como objeto um texto literário, de uma forma que considero produtiva e enriquecedora.
Outro dos temas que têm passado pela minha cabeça, tema este despertado pela leitura de vários contos da antologia Tênebra, é a minha percepção de que houve durante muito tempo na nossa literatura um forte senso moral de decoro, o que a prejudicou em muitos aspectos. Isto tem repercussão em nossa crítica, em especial acadêmica, às vezes muito envergonhada das poéticas radicais do sexo, da especulação filósfica, da iconoclastia e da violência, por exemplo. Somos pudicos em demasia, rodando em círculos em busca de uma “literariade” que ou se expressa com uma verborragia alquímica da linguagem, ou através da documentação da pauta social considerada mais urgente em dado momento.
Quem sabe, não seja a hora de nossa crítica ser de verdade sem vergonha?
Molloy aborda, em vários momentos dos seus ensaios, o quão pudicos somos na produção e na crítica literária, tomando como exemplo a literatura latino-americana escrita em espanhol.
Recomendo demais a leitura!
Em meio à minha mudança temporária para os Estados Unidos, com as malas ainda não desfeitas, encerramos a conversa hoje.
Devo mandar em intervalo de tempo menor as próximas duas edições do Linguagem Guilhotina.
Obrigado pela leitura. E me mandem mensagens, trarão alegria.
C.
Sobre a parte do “com vergonha”, vale lembrar que a censura institucional sempre bateu com ênfase nas pautas de costume. O caso mais famoso é o da Cassadra Rios, cuja obra foi muito censurada.
Chutando aqui, se a gente pega a crítica dos anos 1970-1980, certamente há um temor ou reflexo disso, não?
Enfim, muito bom te ler.
Também gostei desse livro da Sylvia. Um trecho grifado aqui:
"Houve , algum dia, uma 'primeira vez' em que experimentamos o texto de Borges?
Não tentarei responder à pergunta além da resposta óbvia. Sim, como quanto a Veneza, houve uma primeira vez e não (também como com Veneza) não houve nunca uma primeira vez porque Borges, como Veneza (ou como Kafka, ou como Paris, ou como qualquer locus de cultura), esteve desde sempre, sempre já lido".
Bem, talvez não seja o estilo mais cristalino do mundo rs