Linguagem Guilhotina #22 - Quem conta um conto...
Nesta edição, reflito se gostamos, ou não, de contos.
Até que ponto de fato gostamos de ler contos?
Fiquei pensando sobre qual seria nossa conversa nesta edição, quando me deparei, ontem, com uma interessante reportagem da Folha de São Paulo sobre George Saunders, um dos mais celebrados autores da gringolândia. Ele tem um público aqui no Brasil, ao menos nos meios literários/editoriais. De Saunders li não os seus contos, mas o romance Lincoln no Limbo e recomendo. Apesar do destaque recente dado ao seu romance, Saunders conduziu sua carreira prioritariamente como contista.
Em determinado momento da reportagem da Folha, Saunders diz algo que me chamou atenção: “Eu e meus alunos nos perguntamos se não somos parte de uma seita. Mas me consola pensar que os fãs de contos são pessoas interessantes, que leram o suficiente para saber as diferenças entre um romance e uma narrativa breve”.
Parte de uma seita? O autor não exagera. A frase dele, que diz respeito ao mundo literário/editorial dos EUA, poderia ser aplicada ao Brasil sem grandes dificuldades.
O quão valorizada é a arte da narrativa breve?
Quero compartilhar com vocês algumas impressões vinculadas tanto à minha experiência como professor de literatura, quanto como autor que, até o momento, só publicou livros de contos.
Livro de contos vende bastante?
Minha resposta nua e crua é: embora haja exceções, não.
Um dos significativos problemas em relação à valorização da arte do conto diz respeito ao fato de que, se compararmos uma coletânea de contos com um romance, ou com uma narrativa/ensaio de não ficção, ou com uma biografia, veremos o quanto os contos possuem bem menos impacto de mercado. É raro - e acredito que, em tempos recentes, só Itamar Vieira Jr conseguiu a façanha - que um livro de contos esteja entre os mais vendidos ao ser lançado.
Embora livros de contos sejam lançados com frequência, orbita ao redor deles uma expectativa, seja do mercado, ou de muitos leitores, de que aquele livro é só um “treino”, uma “pausa”, para algo consideravelmente maior: O Romance. Cansei de escutar algo como “e o romance, quando vem?” ao falar com alguém de algum projeto de escrita meu dedicado ao conto.
Também fico com a impressão de que muitos escritores encaram a arte do conto como a antessala da glorificação. O conto caberia, nesta visão, ao trainee literário, a uma espécie de estágio obrigatório que prepararia o autor/autora a supostos “voos mais altos”. Ouvi muito coisas assim ao longo destes anos de estrada... Outra questão importante: é mais fácil que você tenha um romance traduzido, do que um livro de contos. Muitas vezes, só quando um romance faz sucesso, é que um livro de contos da mesma pessoa será também traduzido para uma língua estrangeira. Da mesma forma, percebo que as pautas tanto na imprensa, quanto nos influenciadores, com frequência privilegiam os romances aos contos. Por fim, muitas das teorias sobre prosa de ficção, nas últimas décadas, usam como objeto de especulação teórica principalmente, ou de forma exclusiva, romances. Isto é bem verdadeiro em especial para teorias que surgem no mundo acadêmico da língua inglesa.
Cristhiano, seu livro mais recente foi outra vez de contos. Não deu certo para você?
“Dar certo”: aí está algo que vale a pena pensar; vale a pena escrever uma edição inteira sobre o que poderiam significar frases como “o livro deu certo”, ou “a carreira literária deu certo”. No caso dos meus três livros de contos, eu os escrevi porque queria. E porque o conto era o lugar para expressar o que eu sentia ser necessário expressar. Não há nada mais “certo” do que isto. Ao longo, também, desta caminhada, escrevi diversos romances. Um pior do que o outro. Todos repousam na segurança da gaveta, ou eu os destruí.
No caso específico do meu mais recente livro, Gótico Nordestino, tive a alegria de encontrar uma recepção, em diferentes âmbitos, que foi fora da curva tanto da minha carreira, quanto da trajetória, no geral, de um livro de contos. Mas mesmo tendo vendido bem, Gótico Nordestino, por exemplo, saiu com uma tiragem inicial menor do que a típica para um romance. Até hoje, a repercussão do livro, seja a venda de exemplares, seja as portas que ele abriu para mim e tem aberto, fazem com que Gótico Nordestino contribua, quase mensalmente, para o orçamento que paga meus boletos. Até onde sei, isto é menos frequente para um livro como o meu.
Meu último livro, portanto, alcançou mais leitores do que o que eu tinha conseguido em anos anteriores. E, ao alcançar mais leitores, descobri, para minha grande surpresa, que contos não são tão amados assim. Nos primeiros meses após o lançamento do meu livro, com frequência eu me deparava com depoimentos, no Instagram, ou no Twitter, de pessoas dizendo frases como “parece interessante, mas não leio livro de conto”; “apesar de não gostar de contos, vou dar uma chance para esse”; ou “gostei, embora seja difícil eu ler contos ou livros de contos”.
O contato com uma apreciação assim me chocou bastante. Mas é a realidade de parte do público-leitor que lê literatura, hoje, em nosso país (e, pelo que fala Saunders, talvez seja a mesma coisa nos EUA). Em 2022, quando fiz muitos eventos para promover meu livro, recordo de um Determinado Evento, mediado por uma Determinada Pessoa. Esta Pessoa foi ótima mediadora, o evento foi excelente e me senti muito alegre de ter participado dele. No entanto, a Pessoa, antes do evento iniciar, me disse o seguinte: “Cristhiano, não consigo ler livros de contos, não entendo livros de contos, tenho muita dificuldade, mas acho que entendi o seu”.
A questão, como é a de boa parte dos nossos problemas sociais, passa pela educação
Não entender um livro de contos: eu poderia ir para o Twitter e, com ar superior, como vejo com frequência sendo feito, postar um “desabafo” que na verdade só serve para alimentar meu próprio egocentrismo; o desabafo denunciaria a mediocridade do nosso país, da vida literária, e realçaria o quanto Eu sou um Gênio Incompreendido, um mártir da sofisticação abandonado em meio ao Deserto de Ideias do Contemporâneo.
Não farei isso, porque além de ter um mínimo de bom senso, sou um educador. Acredito que, se alguém não consegue entender um conto, ou não consegue entender como ler um livro de contos, algo não caminhou bem na formação leitora daquela pessoa. Portanto, penso que minhas forças podem se voltar a melhorar este panorama. No meu caso, isso está inerente à minha outra profissão: dou aulas de literatura para futuras professoras, editoras e profissionais do mercado das letras; dou aula com a preocupação, e a esperança, de que eu contribua para o efeito multiplicador que existe em toda ação pedagógica.
Portanto, os contos podem estar em sala de aula?
Podem e devem. Eu tenho preferido, em minhas aulas, trabalhar com formas breves, seja um poema, ou um conto. Acho que um conto é, além de fonte de prazer literário, um ótimo recurso para trabalhar as múltiplas competências da leitura. Porque eu vejo o conto como uma concentração, feita através das palavras, de uma experiência existencial e cultural. O conto, esta janela que abrimos para a vida de um ou mais personagens, é pura energia criativa aglutinada em um breve e intenso momento: o texto em estado de brevidade. Por isso, sempre haverá contos nas minhas aulas, sejam elas teórico-históricas, ou de escrita criativa. Em poucos parágrafos ou páginas, um conto ou um poema conseguem ativar o máximo das capacidades expressivas de uma língua. Não é admirável observar como isto acontece?
Por que muita gente tem dificuldade na leitura de contos?
Eu creio que muitas leitoras e leitores brasileiros só se formam como leitoras lendo romances e, dentro do universo do romance, lendo um determinado tipo de romance narrativo e linear. Além disso, estas pessoas consumem narrativas em outras mídias e todas elas estabelecem contratos de leitura semelhantes aos romances. Não foram poucos depoimentos que ouvi, ou que li, de leitores me falando a seguinte dificuldade: “não consigo encaminhar a leitura de algo que não tem continuidade, porque cada conto é uma nova história que começa”.
Além disso, vários destes romances, filmes e séries dão a impressão de “fechar” mais a história, deixando poucas arestas ou ambiguidades quanto às jornadas de boa parte de seus personagens. No conto, pela sua brevidade, muito fica no ar - não dá tempo de explicar didaticamente prólogos e desfechos das vidas narradas. De fato, várias leitoras e leitores reclamam dos finais abertos dos meus contos, já que eu com frequência acabo as histórias no ápice dos conflitos das minhas personagens, deixando no ar o que realmente pode acontecer depois.
Para finalizar, uma dúvida: o conto é importante para a literatura brasileira?
O conto é fundamental para a literatura brasileira.
Se há algo que nos define enquanto literatura, é a habilidade que temos de manejar com louvor formas curtas como o conto, a crônica e o poema lírico. Às vezes, fico me perguntando se não somos uma literatura mais de contos, do que de romances…? No sentido da alta qualidade e regularidade desta produção? Isso, quem sabe, pode ser tema de outra conversa, igualmente.
Boa parte dos nossos maiores autores se dedicou ao conto, ampliando as possibilidades da narrativa curta para a língua portuguesa. Escrever e publicar contos significa manter viva uma das mais profundas e ricas vertentes da literatura brasileira. É algo bonito e de tremenda responsabilidade.
Que livros de contos você indicaria?
Abaixo, imagens de capa de três livros clássicos da literatura brasileira. São dos meus favoritos e sempre recorro a eles quando preciso de inspiração ou da alegria da leitura:
Nestes livros, estão sintetizados os principais temas de seus autores, que os escreveram e publicaram em plena maturidade literária. Para quem não leu, recomendo demais.
E vocês, qual a relação com o conto e os livros de contos? Têm lido, têm escrito, têm apreciado as narrativa breves? Me contem nos comentários.
E fico muito feliz que já tenho aqui na Linguagem Guilhotina 650 inscritos. Se você gostou, não deixa de compartilhar ou de indicar este trabalho. Muito bom conversar com vocês.
Até logo mais!
C.
Contos são sempre uma questão, não? Quando me pergunto o mesmo, penso logo no teu livro, em Redemoinho em dia quente, da Jarid, nos livros de contos de "horror latino americano" como Rinha de Galos e As coisas que perdemos no fogo, todos livros de sucesso. Ou mesmo em Sérgio Sant'Anna e Rubem Fonseca. Como leitor, gosto muito de contos, retratos breves de mundos complexos e infinitudes de possibilidades. Mas de fato nos últimos anos quando os apresentei para profissionais do mercado literário a resposta foi a que você já comentou, sem grandes surpresas: legal, mas quando vem o novo romance?
"Às vezes, fico me perguntando se não somos uma literatura mais de contos, do que de romances…? No sentido da alta qualidade e regularidade desta produção?" - acho que podemos estender essa questão para boa parte da literatura latino-americana.
("um Determinado Evento, mediado por uma Determinada Pessoa" - nomes na minha mesa até a hora do almoço, por favor).