Linguagem Guilhotina #17 (V.2) - Meu primeiro post sobre o nada (e sobre psicanálise)
Neste post, penso o quanto as palavras valem tanto pelo que dizem, quanto pelo que calam.
Escrever, escrever
Queridas leitoras e leitores, este post de hoje só existe pela urgência da escrita.
Já disse a vocês por aqui, ou em eventos, o quanto tenho uma suprema necessidade de escrever.
No entanto, nem sempre as palavras estão à altura do nosso desejo.
Sim, porque existe um bom intervalo entre a força que nos impele a escrever e a realização do ato em si da escrita. Algo que me remete a uma reflexão de Elena Ferrante: “A maneira como imaginamos arrastar para fora, por meio da palavra escrita, um ‘dentro’ fantasmático, por sua natureza sempre fugidia, mereceria mais atenção quando se discute literatura”. A escritora italiana se refere, a partir desta citação, a um descompasso entre a ideia que temos na cabeça e a tradução, sempre fluida e imprecisa, desta mesma ideia na palavra escrita. No meu caso, falo menos de uma ideia e sim de uma pulsão, da energia criativa que precisa jorrar, porém nem sempre encontra palavras à altura, nem ideias tão interessantes.
É o meu caso hoje: escrevo para vocês porque é preciso respirar-escrever.
Alguns anos atrás, eu dava muitas aulas sobre crônica. Um dos conteúdos da minha aula buscava mapear com minhas turmas possíveis temáticas recorrentes da crônica. Uma delas é a da crônica sobre a crônica, ou melhor, a crônica que se constrói na busca por um tema. O cronista, neste tipo de crônica, não tem um assunto definido, portanto faz da busca por um assunto o assunto do seu texto. É uma metalinguagem deliciosa, tão aconchegante quanto pão que acabou de sair do forno.
Assim, de certa maneira hoje escrevo um post sobre a busca de um post. Na transição do final da tarde para o começo da noite de ontem, eu peguei uma revista para ler e acabei adormecendo. Fazia muitos meses que eu não me sentia tão tranquilo, tão pacificado. Acordei por volta das 18:30, olhei mensagens no celular, depois me balancei na varanda, enquanto sentia a energia da escrita se definir dentro do peito. A energia girava e girava e crescia como uma bola de neve daquelas típicas de desenho animado.
Ao abrir o instagram, vi um depoimento sobre a necessidade da escrita, feito por Jon Fosse. O atual ganhador do Nobel de Literatura é um dos meus achados literários de 2024, junto com Annie Ernaux. No vídeo, Fosse diz algo como “quer escrever? sente essa vontade? Escreva”; antes dessa ideia, aliás, ele diz (aqui cito de maneira precisa): “Escrever é um estilo de vida”:
Escrevendo um romance sem escrever
Sentei, então, na frente do meu notebook e disse comigo mesmo: “beleza, hora de retomar o romance”. Daí, nada veio. Nada. Fiquei angustiado. Enchi a página em branco do Word não de palavras literárias, de cenas vividas pelas minhas personagens, mas das ideias que vinham em minha mente no momento em que eu pensava nestas vidas imaginárias. Uma palavra fui puxando a outra… e de repente eu tinha algum caminho. Por exemplo: uma estrutura tripartite para um dos capítulos. Com a estrutura definida, posso organizar o caos das minhas ideias a respeito da protagonista.
Entendi, no entanto, que embora eu tenha achado dois capítulos e tenha rascunhado ideias, não tinha condições de desenvolvê-las ontem. Por quê? Pode ser que eu estivesse ainda de ressaca de um conto que tomou muito da minha energia e que eu tive que enviar em tempo recorde para a editora que o encomendou. Talvez eu só queira escrever, mas não queira escrever o romance.
Foi isso que me trouxe até aqui e até vocês.
Newsletter à procura de um tema (e o que Freud tem a ver com isso?)
Vários temas estão na minha mente para serem abordados aqui. Tenho pelos quatro ideias diferentes de postagens para a Linguagem Guilhotina. Acho-as interessantes. Hoje, contudo, quero escrever, só que não quero lidar com essas ideias. Por isso, decidi fazer aqui o que fiz na minha sessão de psicoterapia desta semana: sentei na poltrona (ainda não estou no divã) e procurei aquilo que nem sabia que buscava.
Sim, tenho feito análise, uma demanda que estava na minha cabeça há anos, mas que só se concretizou em meados de maio, a partir de um contexto de sofrimento. Quando alguém como eu começa análise por causa do sofrimento, vai encontrar muito mais do que a demanda que o levou para a terapia. O que eu achei? Basicamente, o silêncio significativo das minhas palavras. Entendi o quanto eu estou dizendo não só pelas minhas afirmações, mas também pelos meus silêncios e pelas minhas negações. Eu significo nas minhas faltas e na opacidade do meu desejo, também. Cada fala, cada objeto ao qual atribuímos valor, cada comportamento, tudo isso pode esconder movimentos internos pouco acessíveis, cujo sentido só muito depois poderemos, geralmente de maneira parcial, apreender.
Você sabe de fato por que foi levada/levado a fazer aquela escolha?
A psicanálise, embora seja cara e desgastante, tem sido um ponto de virada para mim. Identifico, sem dúvidas, um antes e depois dela na minha vida. Devido à terapia, tenho lido ensaios de Freud. Estou, neste momento, no O mal-estar na civilização. Acho que vale um outro texto desta newsletter com trechos só dos ensaios de Freud que eu tenho lido, bem como sobre minha relação complicada, às vezes preconceituosa, com este saber.
Só sei que na minha empolgação eu posso estar sendo chato com as pessoas do meu círculo mais próximo, porque tenho compartilhado com elas postagens sobre o tema, ou trechos escritos por psicanalistas. Ando enchendo o saco de ex-parceiras com quem estabeleci vínculos de fraternidade; ando enchendo saco de parentes e até de orientandos com conteúdos sobre o tema. Lembro de ter saído das duas ou três primeiras sessões com a sensação de “caramba, isso existe, algo tão incrível assim!”.
Você deve ter percebido que me dispersei.
O método da dispersão é proposital. Sim, porque é a psicanálise que tem me ensinado a largar as rédeas do controle da minha subjetividade. A terapia tem me ajudado a renovar o olhar sobre mim de uma forma que a literatura fazia comigo no passado. A literatura me lia e me libertava; no entanto, a literatura se tornou algo, infelizmente, profissional demais, institucional até, devido às minhas profissões de escritor, professor e crítico. O quanto eu fiquei excessivamente convencional? Esta tem sido uma das investigações das raízes da crise vivida por mim este ano.
A psicanálise tem sido o saber necessário para abalar a literatura e resgatá-la da minha caretice existencial. Ela, a psicanálise, além disso, reativou o desejo do diálogo com a filosofia, outro saber essencial na minha jornada (tem interesse por filosofia e não sabe como começar a ler e a estudar? Leia esse ótimo texto da minha amiga Juliana de Albuquerque).
E agora, o que falar?
Acho que me dou por satisfeito. Achei palavras, conversei, de maneira imaginária, com vocês, sinto que realizei uma vontade.
Fecho citando outra vez Ferrante: “Na escrita, tudo tem uma longa história atrás de si. Até a minha insurreição, a minha desmarginação, a minha ânsia, faz parte de um ímpeto que me precede e vai além de mim”.
Minha live no canal Teoria das Fadas
Há alguns dias eu participei do canal Teoria das Fadas, dedicado à literatura fantástica. Gostei demais da conversa com minha colega Lígia. Falei dos meus livros e também de literatura e escrita em geral. Dá para assistir aí embaixo:
E vocês, o que buscam na escrita? Sentem o impulso de escrever, mesmo sem saber muito bem o quê? Já tiveram vontade de escrever, mas a vontade esbarrou em não conseguir realizar a escrita? Me contem também suas aventuras em terapias e psicanálises.
Nos vemos nas próximas semanas.
C.
Eu tenho buscado a recreação na escrita, o exercício da liberdade criativa.
Profissionalmente sou revisora (há uns 20 anos já), mas cansei de ficar só "entalhando" o texto alheio e resolvi que era hora de tirar meus escritos "do armário", por hobby.
Conheci o processo de escrita automática numa oficina da Aline Bei e adorei. Você se deixa escrever "no fluxo", é maravilhoso! Já tentou?
Este foi meu último texto.
https://readpills.substack.com/p/as-semanas
Amei suas reflexões. A escrira, a psicanálise (leituras) e a filosofia tem ajudado a tirar minha dor do peito e colocado no papel. Às vezes a escrita sai em forma de emoção mesmo, mesmo esperando que o pensamento dê um jeito. Deu vontade de fazer análise lendo o que escreveu... hehehe!