Linguagem Guilhotina #14 (V.2) - Precisamos fazer pesquisa de campo para escrevermos nossas ficções?
Resposta: Sim. E, com certeza, não! Penso nessa questão a partir de uma viagem recente que fiz.
É preciso fazer pesquisa de campo para escrevermos nossas ficções?
Essa é uma boa pergunta.
Uma resposta possível: sim, é preciso.
Outra resposta possível: não, não é preciso.
As duas respostas estão certas.
A ideia por trás da conversa que tenho com vocês hoje é: toda investigação que alimenta um trabalho criativo diz respeito, em primeiro lugar, a você e não a respeito do que se pesquisa. Guardemos essa ideia, volto a ela ao final desta edição.
Férias
Estou de férias do meu trabalho como professor universitário, embora tanto os meus freelas estejam a todo o vapor, quanto meu curso sobre literatura brasileira, na Escrevedeira, que segue até agosto.
A rotina, contudo, sossega bastante quando as demandas de aulas, orientações, burocracias e eventos inerentes à vida acadêmica ficam pausadas por mais ou menos um mês. Assim, não são apenas os freelas que me ocupam esses dias, como também uma nova versão do meu romance.
Há muitos anos eu planejava, em um período de maior folga, fazer duas coisas: viver, após mais de 13 anos, alguns dias do São João na minha cidade natal, Campina Grande, polo importante das festas juninas nordestinas, e passar ao menos uns dias no Cariri Paraibano, região que me fascina.
Foi com muita alegria que pude finalmente realizar estes dois projetos. Aliás, colocá-los em prática, após eu falar sobre isso durante tantos anos para as pessoas que convivem comigo, me fez muito bem. Minha relação com Campina Grande tem passado por uma transformação, porque eu tenho reconstruído minha relação simbólica com a cidade. Os breves dias que passei por lá foram cheios de momentos significativos para a minha vida pessoal. Posso dizer que entendi que a ideia de “amor” possui muitas nuances, muitas porteiras, muitas contradições significativas. Ainda estou digerindo tudo que senti, pensei e vivi, em especial no meu mundo interior, na passagem pela Paraíba.
Precisamos realmente pesquisar para criar?
Há algumas edições desta newsletter, compartilhei com vocês algumas ideias sobre a relação entre nossa vida pessoal e a criação literária. Falei de autoficção, falei de realismo e de literatura fantástica. Eu disse a vocês que, quando eu era mais jovem, me considerava um militante da imaginação, cujo exercício para a criação literária deveria ser o mais absoluto e profundo possível. Com o passar do tempo, mudei de opinião e hoje tenho um outro entendimento dessas coisas.
Uma das consequências da minha ortodoxia da imaginação era o fato de que eu me recusava a fazer pesquisas ou viagens de campo a fim de desenvolver uma ideia para um conto, crônica, ou romance. Se eu tenho a minha fabulação, eu defendia, por que eu preciso da realidade? O tempo me ensinou o quanto não existe ficção x realidade, e sim existe um diálogo amoroso entre as duas esferas, diálogo esse cujo resultado mais belo é justamente uma obra de arte.
Há dois gestos, então, nesse debate: pesquisa bibliográfica e de campo.
Eu fazia a primeira? Sim, mas nunca de maneira aprofundada. Não é como se eu pegasse três livros para ler sobre aquele período histórico sobre o qual eu escreveria... Um artigo me dava mínimas condições de verossimilhança para meus leitores e leitoras acreditarem na reconstituição histórica do meu conto? Então isso me bastava. Ainda nessa seara bibliográfica, minha resistência em aprofundar pesquisa tem a ver com outro fator: eu sou acadêmico, portanto, pesquisador. Logo, como a escrita de ficção é um espaço para mim de muita liberdade, eu tinha receio de viver dentro da escrita literária a dinâmica cotidiana do Cristhiano-Acadêmico.
Por outro lado, ainda nesse campo da pesquisa bibliográfica, há outra forma de pesquisa que, aí sim, eu sempre fiz: a daquilo que eu chamo de sintonia de sensibilidades. É muito comum que eu busque outras obras literárias a fim de preparar minha mente e meu corpo para um tom em comum, para uma sensibilidade compartilhada, para uma visão de mundo. Exemplo: precisei, em certo ponto do meu romance, a fim de construir uma determinada personagem, me “contaminar” da sensibilidade da escritora Jamaica Kincaid e do escritor Henrique Rodrigues. Só em diálogo sensível com as páginas escritas por ambos é que eu consegui um tom mais essencial na criação da específica personagem em questão.
Minha primeira pesquisa de campo: o cariri paraibano
Além de motivações muito pessoais, que dizem respeito ao que tenho vivido em minha vida nos últimos meses, ter ido a Paraíba tinha também a finalidade prática de eu sentir um tanto de uma região, o cariri, cuja vivência eu apostava seria significativa para o meu processo de escrita do romance. “Mas Cristhiano”, vocês me perguntam, “já li coisas tuas que tentavam sim traduzir um senso de lugar. Essa foi realmente a tua primeira viagem de pesquisa de campo pra ficção?” .
Sim, ela foi. Explico: eu naturalmente absorvo e me inspiro nos lugares para os quais viajo. Fui meses atrás de férias para Minas Gerais e algo disso ainda vai aparecer na minha escrita, por exemplo. No entanto, o cariri é a primeira viagem focada em um projeto de ficção no qual estou envolvido. O que eu pesquisei? Primeiro, a mim mesmo. Como eu vivi o lugar? Como eu reagi? Quais prazeres e angústias afloraram? Segundo, eu tentei sentir meu corpo naquele espaço. Terceiro, tirei fotos de locais, objetos e edificações que julguei seriam inspiradores.
Dentre os lugares no cariri que sempre quis visitar, o principal é a atual grande atração turística do lugar, o Lajedo do Pai Mateus. Trata-se de um parque de pedras formado principalmente em cima de um planalto. É uma paisagem que deve ser visitada no cair da tarde e só pode ser acessada com guias. Ali, em meio a pedras que demoraram milhões de anos para se formar, em meio a pinturas rupestres, em meio à luz dourada do sol, em meio à caatinga, eu fiquei profundamente impactado. O cariri e em especial o Lajedo são paisagens muito familiares a todos nós, sendo ao mesmo tempo estranhíssimas. Silêncio e inquietude; luz e tempo - essas são as palavras da minha experiência no Lajedo.
O resultado para meu romance? Em poucas horas, já nos passeios pelos lajedos e trilhas que visitei no cariri, eu reconfigurei mentalmente todo o meu romance.
Mas o que significa “reconfigurar”? Meu livro agora ficou “melhor” depois da pesquisa? Acabo de gestar uma “obra-prima” só por ter feito uma viagem?
Cris, linda sua viagem, inspiradora, mas meus boletos não me permitem nem atravessar a rua pra comer num bandejão, ou pagar um pastel na feira pro meu peguete, imagina então viajar… Meu projeto literário fracassará por isso?
Como acabei de escrever, meu romance mudará bastante a partir da minha viagem.
Mas ele ficará melhor? Nunca saberei. Ele será apenas diferente do que eu tinha planejado incialmente.
Logo, meu ponto de chegada é: uma viagem de campo para escrever ficção pode ser incrível, mas no fim ela é uma experiência em si mesma e nunca definirá uma boa prática de escrita. Ela é uma das formas que um escritor, uma escritora, pode lançar mão a fim de alimentar as Musas que existem dentro de sua cabeça. Porém nada garante que seu livro, meu livro, será melhor por isso.
Podemos ler dezenas de livros numa biblioteca; podemos fazer várias viagens - nada disso é a razão de ser de um livro. Nenhuma viagem maravilhosa legitima qualquer obra literária. Nenhum discurso que não esteja no texto literário substitui esse mesmo texto, além disso.
Escrever literatura é uma experiência particular, na qual o que conta é o seu silêncio, a sua solidão, o seu foco e a busca da linguagem própria que descreverá a sua vivência interior e o modo como você lê o mundo ao seu redor. Dou, aliás, um exemplo final: parte da pesquisa que fiz pro meu romance implicava em tirar fotos de determinado ser vivo. Não fui para um parque distante ou algo assim, basicamente visitei duas praças perto da minha casa e tirei fotos. Pronto. Zero impacto nas faturas do meu cartão.
E sabe por que eu digo tudo isso? Volto à frase inicial deste texto: toda investigação que alimenta um trabalho criativo diz respeito, em primeiro lugar, a você e não a respeito do que se pesquisa. Ou seja: crie processos que contribuam para que você se encontre criativamente. Pode ser o cariri paraibano, ou pode ser um minuto de reflexão em seu sofá, enquanto a água da chaleira do seu futuro cafezinho esquenta.
E vocês, fazem pesquisas quando escrevem? Livros, caminhadas, viagens? O que acharam, também, das fotos da viagem? Me contem o que têm feito, faz um tempo que eu não publicava aqui e, infelizmente, os intervalos serão cada vez maiores. Mas continuemos a conversar.
C.
As fotos estão maravilhosas! Invejei o banquete!!!!
Adorei o texto e as fotos. Me lembrou a Pedra do Ingá e o álbum Peabiru: Caminho da Montanha do sol, de Lula Cortes e Zé Ramalho. A capa do disco e encarte são fotos maravilhosas dos artistas no local, com foco nas inscrições rupestres.
Um beijo.