Linguagem Guilhotina #12 (V.2) - As bem-aventuranças do Amor
O mito de Orfeu, paixões desencontradas, conexões afetivas e um conto inédito meu sobre relacionamentos amorosos.
Já amei e já fui amado.
Por isso, me considero bem-aventurado.
Aproveitando a semana do dia dos namorados, quero lembrar para vocês do mito de Orfeu, além de convidar vocês a lerem um conto inédito meu, sobre o qual falei aqui em edições anteriores. Parece estranho divulgar um conto um tanto sombrio, de feições góticas, e que toma como ponto de partida não o encantamento da paixão, mas a melancolia do fim de uma relação. Creio, contudo, que faz sentido, porque no fim eu quis escrever sobre relações e possibilidades de conexões: não é disso que se trata um tanto o dia dos namorados? Apesar de ter sido inventado pelo pai de João Dória, acho de verdade o dia dos namorados fofo e lúdico. No entanto, uma data como essa pode nos levar a confrontar angústias diante de um espelho. E minha função como escritor é ser, às vezes, aquele que te ajuda, e que me ajuda, a ir até o espelho.
Falemos, antes de falar do meu conto, sobre Orfeu.
Orfeu
Ao longo da nossa caminhada, percebemos que certos arquétipos literários ou mitos se mantêm dentro da gente. Eles nos acompanham porque dizem algo de relevante sobre nós mesmos. No meu caso, um dos mitos aos quais eu sempre volto é o do poeta Orfeu e sua trágica relação de amor com sua amada Eurídice. Vou recontar esse mito para vocês a partir da sua versão em um dos meus poemas favoritos da Antiguidade, as Metamorfoses, do poeta latino Ovídio.
Orfeu, celebrado como o maior dos poetas, perde a sua Eurídice em decorrência da picada de uma serpente. Inconformado, ele não aceita a morte e vive o mais extremo luto da história da literatura. Como consequência, decide descer até o Hades para resgatar Eurídice do mundo dos mortos. Chegando lá, Orfeu, em sua dor e com sua poesia, comove todos os habitantes do Inferno, inclusive o próprio Hades, o seu regente. Lhe é concedido o privilégio de levar sua amada de volta ao reino dos vivos, mas sob uma condição: ele deve andar na frente dela, no caminho de volta, e nunca olhar para trás.
“Cheio de amor”, “ansioso”: essas são as palavras de Ovídio, na tradução de Domingos Lucas Dias, que descrevem o estado emocional do personagem na sua caminhada de fuga do Hades. Orfeu, claro, não aguenta esperar: olha para trás e perde Eurídice para sempre. De volta, sozinho, ao mundo dos vivos, a sua dor só aumenta. É um luto tão gigantesco, tão avassalador, que parece tomar conta do mundo. Como punição, Orfeu acaba assassinado pelas bacantes, que o estraçalham e jogam os pedaços do seu corpo pelo mundo. A cabeça de Orfeu, porém, se mantém viva e segue se lamentando e murmurando, o que causa luto em toda a natureza ao seu redor.
Há duas coisas que quero chamar atenção, depois que fiz esse breve resumo do enredo do mito tal como Ovídio nos conta: primeiro, a reação de Eurídice, algo que nem sempre é explicitado quando lidamos com esse mito. O que ela pensou? “Deu ruim”; ou “Me perdeu playboy” ou “Que merda hein Orfeu?!”?
Quase isso. No momento no qual Orfeu olha para trás, Ovídio nos diz que Eurídice, apesar de saber que o amor entre ambos está condenado, “do marido não tem queixa alguma/(de que haveria ela de se queixar senão de ser amada?)/diz-lhe o último adeus, que mal lhe chega aos ouvidos,/e retorna ao lugar de onde partira”.
O olhar para trás, que rompeu a relação, fez Eurídice se sentir amada. Ela perdoa o erro de Orfeu, porque o interpreta como um gesto profundamente movido pelo amor que ele tem por ela. A imagem nunca deixou de me atormentar ao longo da minha vida: o amor faz e desfaz. Só despencamos para o Hades, porque o amor atuou em nossos gestos e escolhas. O amor é tanto a lâmina do corte, quanto a agulha que tece.
Ovídio faz questão de enfatizar que Eurídice morreu pela segunda vez. A primeira morte de Eurídice, picada por uma serpente, é a interdição da manutenção da relação, que surge com a morte simbólica do relacionamento. A segunda morte é o longo e doloroso trabalho do luto de aceitação e esquecimento da imagem amada. Orfeu, claro, não compreende isso. Incapaz de se refazer, se torna presa fácil para a destruição.
Porém, esquecemos que há um final feliz para essa história, por incrível que pareça. Este final é pouco citado. Depois de muito sofrer, a Orfeu é concedido, pelo deus Apolo (Febo, para os romanos), o direito de morrer. Sua alma chega ao Hades, onde ele reencontra Eurídice, “a quem, com paixão, abraça”. Em seguida, Ovídio continua: “Passeiam juntos ali, ora lado a lado, ora Orfeu segue Eurídice,/que vai à frente, ora a antecede, à frente indo ele,/que em segurança se volta para a contemplar”.
Não é bonito? Aqui, o luto se completa: Orfeu e Eurídice se reencontram não como amantes, mas como companheiros na memória um do outro. O trauma da ruptura para de sangrar, a dor que rompia o mundo volta ao estado de equilíbrio. Orfeu e Eurídice caminham juntos pelo Hades, porque agora seu amor se transformou em uma história que dá forma ao próprio caminhar.
Como escrevi “Anunciação”, meu conto inédito?
Como também Alceu cantaria, Márcia, na primeira manhã após o término, acordou mais cansada do que sozinha. Trocaram mensagens respeitosas, desculpas pelas palavras afiadas e, nos dias seguintes, os objetos pessoais de cada um foram deixados nos respectivos apartamentos. Márcia pensou como tudo é literatura. A cada minuto, casais trocam juras de amor, ou os objetos do fim. A cada minuto, cada casal enamorado é o mesmo casal, cujos prazeres, tormentos e desfechos formam um círculo desde os primórdios dos tempos. (trecho do meu conto “Anunciação")
Leia aqui o conto: https://www.sescsp.org.br/editorial/anunciacao/
Publiquei, agora em junho, um conto inédito chamado “Anunciação”, publicado pela revista E, do Sesc São Paulo. No meu conto, a escritora de horror Márcia acaba de passar por uma separação amorosa que lhe traz muita culpa e frustração. Envolvida com um outro parceiro do qual ela não gosta tanto, Márcia vai com ele do Recife até um engenho abandonado. Seu parceiro é publicitário e quer visitar o local a fim de averiguar se seria uma boa locação para uma campanha publicitária; Márcia, por outro lado, busca inspiração, nas ruínas, para a retomada da escrita do seu novo romance. Ao chegar no engenho, Márcia encontra a materialização de um trauma, trauma este que tanto pode ser seu, quanto de uma outra subjetividade.
Em linhas gerais, esta é a sinopse e não vou entrar em tantos detalhes, porque quero muito que vocês leiam e me digam o que acharam. “Anunciação” é um conto pós-romântico e gótico, com tons de terror. Ele é dividido em duas partes: na primeira, fiz uma crônica, com humor, das desventuras amorosas de Márcia. Na segunda parte, a possibilidade do sobrenatural surge e o conto se torna mais lírico e dark, tendo como ápice o encontro de Márcia com uma entidade. Eu poderia ter escrito e publicado só a segunda parte, porém senti que queria fazer alguns comentários sobre relacionamentos entre homens e mulheres, até porque o tema não é tão frequente em meu trabalho. Além do mais, conhecer Márcia melhor me pareceu um bom caminho para que, na segunda parte, existisse um contexto mais denso através do qual a gente vivenciaria a jornada da minha personagem.
Como faço com frequência, o sobrenatural é aqui uma possibilidade. A entidade que Márcia enxerga é a projeção do seu luto amoroso, ou é um ser que de fato existe? A escolha é sua, leitor e leitora. No fim, quis falar um pouco sobre não só desencontros, mas também sobre encontros. Sobre como se conectar com o meu trauma e o trauma do Outro é um caminho de autonomia e de libertação.
Quem conhece a minha vida pessoal, sabe que há ecos de vivências minhas em “Anunciação”. O quão autobiográfico é esse conto? Quero dizer para vocês que ele é ao mesmo tempo muito autobiográfico e pouco autobiográfico. Sim, porque há um fato e um luto; utilizei ambos como forma de construir uma verdade emocional em “Anunciação”. Márcia, seu parceiro e a entidade são baseados em pessoas reais? Sim. Na verdade, são baseados em mais de uma pessoa ao mesmo tempo. E igualmente são baseados em mim. Márcia sou eu quando abandono relações; Honório, o parceiro com o qual ela só está junto como maneira de tampar o Vazio do luto, sou eu no mais ridículo dos meus comportamentos masculinos, sou eu sendo sufocante com minhas parceiras; a entidade sou eu também, desta vez nas situações em que me vejo na mais dolorosa fragilidade.
Por fim, existe um bocado de Orfeu neste conto, porque Márcia, tal qual Orfeu, também desce a um Hades. A quem ela quer resgatar? Você terá que ler meu conto e chegar às suas próprias conclusões. Quem sabe, a sua conclusão sobre o desfecho dirá mais sobre você, do que sobre meu texto.
Quem é Orfeu para vocês? A minha leitura do mito é bastante pessoal e não exclue outras perspectivas. Me digam também o que acharam de “Anunciação”, é importante saber como caminhou a leitura deste conto. Obrigado por estarem por aqui, conversar com vocês tem sido fundamental nesses tempos recentes.
Uma boa semana de celebração do amor (e de celebração dos seus riscos, por que não?)
C.
Se for pra encher minha caixa de entrada com interpretações mitológicas desse quilate tá liberado :)
O olhar para trás de Orfeu sempre foi muito visto como fraqueza, mas concordo contigo, sempre vi como o escapulir de alguém que de tanto amar não se contém. E de certa forma, não é isso a paixão? Esse queimar incontrolável, esse comichão insistente, esse pulsar impulsivo? E não é justamente esse desespero e intensidade quem finda em um auto sufocamento essa mesma paixão? Como sempre adorei os pensamentos da vez.