Linguagem Guilhotina #11 (V.2) - A quem interessa a nossa vida pessoal?
Vida pessoal: modos de usar na literatura.
Serei sempre Outro?
A quem interessa a mim mesmo?
A quem interessa a minha história de vida?
A quem interessa por quem sofri, a quem amei?
Observando curadorias de eventos literários, obras recém-lançadas pelo mercado e pesquisas acadêmicas, posso dizer com segurança: o Eu voltou com força para a nossa literatura.
Mas isso é bom?
Já fui um radical: conheçam Cris, o Militante Ortodoxo da Imaginação.
A motivação para a nossa conversa neste fim de maio é o fato de que acaba de ser publicado um conto inédito meu chamado “Anunciação”.
Este conto saiu na edição de junho da Revista E, publicação mensal que é editada pelo Sesc e distribuída em todas as unidades Sesc do estado de São Paulo. Em algumas unidades do Sesc a revista acaba de chegar, mesmo que maio não tenha terminado. “Anunciação”, que poderia ter sido, se existisse na época de sua escrita, o décimo conto de Gótico Nordestino, tem muito da minha vida pessoal recente, como também passada. Quais fatos da minha vida, você me pergunta? Não acho necessário dizer.
Isto que acabo de escrever me coloca em estado de contradição. Como assim utilizar, na arte que produzo, vivências da minha intimidade e, ao mesmo, me recusar a explicitá-las? Tal posição lembra um Cristhiano mais jovem, que era um militante radical da imaginação na ficção. Me causava constrangimento sequer pensar em escrever uma história que pudesse ser entendida como “confessional”. Meu posicionamento não dizia respeito somente à criação, mas ao que eu lia.
Desde cedo, a inclinação pela imaginação me fez pender para o fantástico em detrimento do realismo. Eu simplesmente desconfiava de ideias como “realidade”, “pessoal”, “intimidade”. Devido a estas preferências, eu só fui ler uma biografia, gênero tão popular no mercado editorial, bem depois dos meus 30 anos (hoje em dia adoro biografias bem feitas, principalmente se forem sobre escritores e artistas em geral). Naquela época, eu dizia: “nada mais ridículo do que a tal da vida exposta de forma mais ou menos direta”.
Com o passar dos anos, mudei. Passei a apreciar as diferentes formas de narrativas realistas, me engajei em assistir documentários e não só longas de ficção, decidi abrir, na minha escrita, janelas através das quais meus leitores e leitoras possam pensar: “acho que aqui ele de fato está falando de si usando as palavras e nossos olhares como espelhos íntimos”.
Mas é possível escrever literatura sem se basear na própria vida?
Sim, entendo sua pergunta.
Minha resposta é a seguinte: é impossível criar sem que partamos das nossas dores, alegrias e experiências de vida.
Neste sentido, toda literatura é autobiográfica, assim como são autobiográficas nossas escolhas de leitura, por exemplo. Sim, nossas leituras! Pensa comigo. Para um pouco agora e tenta lembrar, leitora/leitor, dos últimos dez livros, ou textos, literários ou não, que você escolheu ler sem que eles fossem diretamente conectados a necessidades do seu trabalho. Coloque, em sua mente, cada uma das dez escolhas na mesa. O que é possível enxergar? É possível enxergar quem é você e quem você procura em si própria/próprio.
A questão, desta forma, é outra, creio eu: qual linguagem é possível criar a partir da vida vivida? Existe um certo, ou um errado quanto a isso? Tenho pensado bastante a respeito.
Nossa conversa não terminou, entretanto é possível termos uma primeira conclusão: ler e escrever se alimentam da seiva que percorre nossa trajetória. Não há como escapar de quem somos, nem daquilo que nos cerca e nos forma, na hora de nos expressarmos.
Vida contemporânea: modos de escrevê-la
Durante séculos, o aspecto pessoal na literatura foi conceituado como “autobiográfico”. Ao lermos um romance, um conto, um poema, o autor/autora daquela obra deixava pistas de que parte da experiência narrada dizia respeito a fatos vividos por quem criou a obra.
Às vezes, a obra tinha um personagem que a teoria da literatura classifica como alter ego: um representante do escritor em sua obra. O alter ego seria um avatar, um emissário, um embaixador do seu criador; um imagem espelhada, porém autônama o suficiente para ser vista como um personagem vinculado ao autor de modo indireto. Eu tenho um alter ego na minha ficção: se chama Lucas Motta, um dos personagens do meu livro Na outra margem, o Leviatã. Ele tem voltado a aparecer em escritos recentes…
Se o texto literário produzido estava colado demais na autora/autor, ele deixava de ser lido na chave da ficção e entrava na “crônica”, na “memória”, na “autobiografia”. A literatura contemporânea, contudo, trouxe outra maneira de representar vida e arte: a autoficção. Nela, as fronteiras entre a autobiografia e a invenção são borradas de propósito. O alter ego se transforma no próprio Eu.
A obra de autoficção, portanto, está quase na confissão, quase no relato puramente pessoal, mas nunca se define neste lugar. O texto autoficcional é ardilosamente construído para nos dar um forte sabor de realidade, sem abrir mão do lúdico da inventividade (nas suas expressões de maior qualidade, ao menos).
A autoficção, o autobiográfico e o memorialístico vêm e voltam em ondas. Neste momento, eles estão “quentes” de novo na preferência do público, em especial no caso da autoficção. Confesso a vocês que ler autoficção não funciona tanto comigo. Eu sei, eu sei: preciso de uma mente ainda mais aberta. Está explicado um dos motivos que me fizeram não ler ainda a obra de Annie Ernaux, cuja popularidade atual contribui muito para o retorno do prestígio da autoficção entre nós.
Não ajuda o fato de que ali no fim da década dos anos 2000 em diante a autoficção virou uma febre em nosso romance brasileiro, com uma fatura literária de baixa qualidade. 90% daquelas obras eram escritas por um egocentrismo masculino que não parava de se celebrar. Que cansaço!
Tomo consciência nesse momento do quanto soo o Cris Militante do passado. Ernaux está nos meus planos de leitura em 2024, porque ela me foi indicada por várias pessoas cujo gosto literário confio bastante. E na literatura brasileira temos romances interessantes que, calcados na experiência pessoal direta, não abrem mão da criação de uma linguagem inventiva - penso em Natalia Timerman, Tiago Ferro e Julián Fuks.
Comendo imagens: os meios de comunicação, a literatura realista e as redes sociais
Por que queremos tanto consumir vidas “reais”?
Não sei se consigo dar uma resposta satisfatória a essa questão. Mas vou tentar. Primeiro ponto: na história humana, produzir e fazer circular imagens de si é uma ação muito recente. O busto, a efígie, o retrato e a pose foram, durante séculos, prerrogativa da representação do poder da religião e do poder político. Com o surgimento da imprensa, dos meios de comunicação, do barateamento dos modos de produzir imagens, nós, meros mortais, passamos a conviver com centenas de cópias nossas, que flutuam invisíveis nas tramas das imagens compartilháveis.
Tal processo se tornou ainda mais intenso com as redes sociais. Por fim, boa parte de nós temos em nossos bolsos um celular com câmera. Ainda peguei um tempo em que a produção de imagens dizia respeito a um ofício a ser aprendido minimamente e que estava vinculado a um objeto - a máquina fotográfica - muito menos integrado ao nosso cotidiano, ao nosso corpo, do que um celular.
Outra resposta possível é bastante literária.
A partir do século XVIII, nós como civilização leitora passamos a nos apaixonar pelo realismo. O realismo trouxe a novidade do olhar atento para as nossas emoções, paixões e angústias cotidianas. O realismo tomou para si a importante tarefa de mapear todas as minúcias da vida dos homens e mulheres, independente da classe social, profissões e realizações. Nosso olhar para o mundo não é mais puramente transcendental, ou épico. Não estamos buscando o tempo todo as alegorias cósmicas ocultas na flor de um jardim. Pelo contrário, buscamos compreender a vida diante de nós. Buscamos compreender uns aos outros. Sobreviver, ter prazer e fugir da tristeza - é basicamente isso. Nosso olhar constitui o mundo como um romance realista. Logo, nada mais natural do que extrapolar o realismo ao máximo e abraçar a realidade até mesmo à custa da ideia tradicional de ficção.
Por fim, algo que sempre brinco com minhas turmas da graduação e da pós: ora, quem não gosta de uma fofoquinha? Nesse sentido, todo escritor é um fofoqueiro, porém não da vida alheia, mas da vida que ele inventa. Portanto, dentro desse processo de inventividade, por que não criar o máximo de ilusão possível de que o “vizinho” é de fato… alguém que “existe”?
Infelizmente, você nem sempre é tão interessante quanto pensa
Agora chega a parte da nossa conversa na qual você fica chateada/chateado comigo.
O fato é que aquele relacionamento seu que terminou (tragicamente, como são todas as histórias de amor), aquela ideia que surgiu (genialmente) na mesa do bar, aquele (épico) porre com os amigos; os seus amigos, o seu gato, sua mãe, sua trilha em um lugar distante, sua foto com a Madonna: nada disso é tão importante assim. Ou melhor, é importante para você em termos da sua caminhada de vida pelo nosso planeta.
Mas por que isso teria que obrigatoriamente ser literatura?
Vivemos em um momento muito rico da literatura, no qual o palco se abriu como nunca antes para uma pluralidade de vozes que, finalmente, faz jus à complexidade da nossa cultura brasileira. Temos mais espaço para vozes queer, trans, negras, femininas, não binárias, quilombolas e indígenas, por exemplo. O mérito da construção deste espaço é das próprias vozes, que há décadas lutam por ele.
Todos nós devemos lutar para mantê-lo plural e igualitário. Para evitar qualquer mal-entendido (estamos na internet, afinal), enfatizo a seguinte posição: o mundo da cultura precisa estar preparado para receber, sem preconceito algum, as vozes que dele desejam fazer parte. O que havia até pouco tempo atrás era uma interdição a muitas dessas vozes, ou uma subestimação delas: interditar ou subestimar uma autora por ela ser uma mulher negra, por exemplo, é hoje inaceitável. Ainda bem. Repito: devemos lutar para ampliar o acesso de todas as vozes à literatura. Esta é a missão cultural coletiva que nos une. No entanto, nenhuma identidade, por mais importante que ela seja, é sinônimo de literatura, ou de qualquer arte. É o que fazemos com nossas circunstâncias, no manejo da linguagem artística, que constrói a arte.
Levando tudo isso em conta, concluo que cada história individual de vida pode ser ao mesmo tempo interessante e desinteressante. Muitos autores e autoras supõem que a espontaneidade do relato que fazem de sua própria vida basta para fazer uma grande obra. Não concordo. É preciso arrancar a vida do nosso peito, torná-la estranha a nós mesmos, dar a ela existência própria, autônoma, e fazê-la virar linguagem em estado de invenção - aí, quem sabe, tenhamos conseguido merecer a literatura.
Portanto
Na arte não há regras. Todos os caminhos são válidos e muitas vezes um caminho escolhido não leva a gente ao lugar pretendido. Ter uma carreira que lida com a criatividade é muitas vezes um angustiante jogo de tentativa e erro (quase como é, também, o amor, não acham?). Trabalhar com o Eu colado à literatura que escrevemos é tão arriscado, e tão fecundo, quanto se esconder atrás de máscaras que nunca revelam quem somos, nem revelam o que vivenciamos.
Só acho que, se a vida “imita” a arte e a arte se inspira na vida, não sei se a vida deveria devorar a arte.
Como vocês enxergam o Eu na literatura, bem como as relações entre vida e arte? A melhor arte é aquela colada à vida de seus criadores, ou seria o contrário? Adoraria saber a opinião de vocês a respeito. Deixem também, se for possível, nos comentários sugestões de leitura de obras de autobiográficas, autoficcionais, memorialísticas que vocês curtam. Na próxima edição, em junho, quero falar de amor e literatura a partir do meu conto “Anunciação”.
Até a próxima!
C.
Meu querido, eu concordo tanto com você que se pudesse curtia duas vezes. É isso. É completamente isso.
o filtro do seu vai estar sempre presente, em maior ou menor grau, de forma consciente ou não. o mais difícil - e importante - é saber como fazer bom uso dele.