A importância de abandonar um livro é a mesma da necessidade de findar um relacionamento
Existe mérito em abandonar uma leitura? E mais: primaveras em Paris e em Fortaleza, além do registro de outros eventos legais em abril e março.
É saudável desistir. Em alguns casos.
Hoje, venho em defesa do ato de abandonar uma leitura.
Eu digo isso porque acabei de abandonar um livro muito elogiado e que parecia não só ser a minha cara, como também parecia aquela leitura de cabeceira que eu estava realmente desejando/precisando.
A leitura de literatura possui uma dimensão profissional para mim. Eu estou o tempo todo lendo literatura por trabalho. Mas além da leitura profissional, é preciso que exista um espaço na minha vida para a leitura lúdica.
Ela nunca será inocente, no sentido de que o meu olhar para qualquer obra, em especial literária, por mais que seja de “cabeceira”, estará sempre misturada com a minha vida profissional. Em anos recentes, eu estava com dificuldade para ter essa leitura do fim da noite, aquelas páginas que pego, sem grande compromisso, para ler na cama (seja na minha, ou numa cama alheia) antes de dormir. Percebi, porém, que a ausência de um espaço livre, prazeiroso, lúdico, para a leitura, em meu cotidiano, começou a me fazer mal. A literatura, a minha experiência com ela, corria o risco de ficar mais e mais engravatada.
O que eu leio por prazer, o que fica na minha cabeceira? Varia bastante. Tudo depende da época. Há momentos que pego muitas histórias em quadrinhos. Outros momentos, os clássicos. Em outros, literatura contemporânea. Atualmente, eu tenho preferido romances, até porque continuo na escrita de um (olhaí, mesmo na cabeceira, a instrumentalização do prazer…). Atualmente, eu estou com a cabeça querendo ler obras muito imaginativas no campo da ficção científica e da fantasia.
Das minhas leituras mais recentes, me marcaram muito obras gringas contemporâneas que não têm a ver com essas duas linhas do fantástico: A mais recôndita memória dos homens, de Sarr, Querido babaca, de Virginie Despentes, bem como a antologia de peças de teatro, escritas por Jon Fosse, atualmente um dos meus escritores favoritos, recém-lançada aqui no Brasil. E adorei De quatro, de Miranda July, embora eu teria cortado de 50-100 páginas deste romance (olha eu aqui com olhar de editor/crítico para um livro de cabeceira, não tenho jeito, hein?). Recomendo todas essas leituras fortemente. Elas me remeteram àquele Cris criança que pegava, na biblioteca, vários livros e os lia, deitado na cama do seu quarto, até dormir.
Quando eu era mais jovem, eu trabalhava com a ideia de que missão de leitura dada era missão cumprida. Eu lia tudo que caía na minha mão. Tudo mesmo. De romances pulp de sacanagem feminina tipo Julia e Sabrina, vendidos em banca, passando por quadrinhos do Batman, até peças, poemas e romances de todos os gêneros e autorias. Se fosse ruim, eu pensava, se eu não gostasse, eu pensava, pelo menos aquilo faria parte do meu repertório de alguma forma. Pelo menos, eu concluía, a leitura desempolgante se tornava uma nova parte de mim. É que eu tinha (ainda tenho) um problema muito forte com a noção de desapego. Quando eu pego um livro para ler, eu passo a construir um relacionamento com ele. Como assim eu vou, facilmente, abrir mão de um relacionamento? Como assim aquela vida-leitura, contida no livro, escapará do meu olhar, do meu controle?
O problema é que não só o tempo fica escasso. A gente começa a se cansar. A impaciência que às vezes vivemos após tantas decepções em relacionamentos afetivos existe também no ato de ler. Pegamos mais um romance contemporâneo que foi exaltado pela imprensa ou por influenciadores como a Maior Obra de Todos os Tempos e, após as primeiras páginas, pensamos: caramba, nada demais! Há um lado muito negativo no fastio da desistência da leitura, no sentido de que um ethos do nosso tempo contemporâneo, do capitalismo no estágio no qual existimos no século XXI, é o da necessidade da impaciência. Impacientes, descartamos com maior rapidez. Consumimos, portanto, com maior rapidez: pessoas, objetos, afetos.
Por outro lado, há um lado bem bom em desistir. Não se trata somente de “tempo é dinheiro e a vida é curta”, embora isso também seja importante. Aproveitar de maneira qualitativa as horas da nossa vida é sempre algo precioso. Desistir, no entanto, é uma modalidade de autoconhecimento. É na desistência que muitas vezes entendemos quem somos. O que eu desejo? O que eu quero? Isso se revela não apenas na realização do desejo, mas no ato de deixar pra lá. Eu me entendo como leitor toda vez que eu desisto de ler um livro. Caramba, eu penso, então é disso de que eu sou feito como leitor? É esse meu momento atual de leitura? Para quem é escritor, desistir de ler também é fundamental, porque na desistência pode ficar claro que tipo de literatura queremos escrever.
O livro que abandonei esses dias: Estação Perdido, de China Miéville
Quero exemplificar com a minha atual desistência.
Há anos eu penso em ler Estação Perdido, romance colossal do escritor inglês China Miéville. Esse romance é muitas vezes classificado como sendo new weird, que seria uma vertente da literatura fantástica que faz uma mistura entre os gêneros do horror, da fantasia e da ficção científica. Em Estação Perdido, publicado originalmente em inglês em 2000, somos apresentados a uma cidade imaginária onde a magia convive com uma ciência avançada, mas com cara de século XIX (lembra, neste sentido da ambientação, o ótimo desenho animado Arcane, da Netflix; quem sabe o jogo e o desenho não foram influenciados por Miéville?). Seres humanos, nesta cidade, convivem com raças alienígenas: homens-pássaro, mulheres de pele avermelhada com besouros no lugar da cabeça, sapos gigantes que fazem esculturas usando água, por aí vai.
O romance tem centenas de páginas e a sua promessa é que ao longo da leitura (as letras são miudinhas, o que começa a ser um problema para um leitor pós-40 anos como este que vos escreve) os seus leitores e leitoras vão ser transportados para um outro mundo. Bem, era tudo o que eu queria: viver uma vida bem alienígena, impregnada de magia. O contraste era com o já citado romance de Virginie Despentes, uma ótima atualização do romance epistolar que narrava a improvável amizade entre um escritor de minha idade, bem babaca e machista, e uma famosa atriz feminista mais de uma década mais velha que ele.
Após um deslumbre inicial de leitura, Estação Perdido começou a me cansar. Eu comecei a me forçar a ler o livro e comecei a pensar em abandoná-lo. Ensaiei um abandono da leitura, mas, no dia seguinte, insisti mais uma vez, culpado por ter desistido.
Daí, finalmente, anteontem, parei e cheguei à conclusão de que Estação Perdido não é para mim.
As razões para um término
É um romance ruim?
Longe disso.
Ele merece sua fama. A imaginação do seu autor é prodigiosa, algo invejável. Também adorei o estilo de Miéville. Ele tem um talento, por exemplo, para o poético. Ainda no campo do estilo, ele faz umas comparações criativas e eu adoro essa figura de linguagem. Eu próprio a uso com frequência.
No entanto… os personagens são completamente desinteressantes. Eles são visualmente legais, porém sem muita substância. As cenas começaram a ser muito parecidas com tantas cenas semelhantes que li ou assisti a minha vida toda. Para uma obra que se vende como “estranha”, isso é um mau sinal. O gangster que uma personagem encontra é um monstro, porém toda a cena do encontro é escrita como inúmeras outras cenas de encontro com gangsters que já vi. De que adianta colocar um monstro, cujo design é bem legal, no lugar de um bandido humano, se toda a caracterização, bem como o desenvolvimento da cena, não saem do clichê? Ou seja, achei que Estação Perdido tem muitos visuais bonitos, mas pouca originalidade substancial. Este é um grande problema para muita literatura fantástica que leio hoje em dia.
O que mais me desanimou, porém, é que Estação Perdido com frequência deixa de desenvolver o que eu considero os elementos mais interessantes de uma narrativa a fim de me dar parágrafos e mais parágrafos de explicação sobre aquele mundo do fantástico. Com frequência a impressão que eu tive foi que eu lia uma página de wikipedia, ou o verbete de uma enciclopédia, e não um romance. Existe um perfil de leitor que ama esse tipo de coisa, mas eu não sou esse perfil. Logo, se explica porque minha literatura, ao construir elementos fantásticos, mais evoca o sobrenatural do que explica suas regras com detalhes.
Algumas conclusões, a partir deste caso: a desistência de uma leitura diz mais a respeito de quem eu sou como leitor, do que sobre o livro em questão. Ainda mais no caso de um livro que, dentro do universo da literatura fantástica, tem sim qualidades e possui reconhecimento merecido. Outro ponto importante, como eu disse, é que desistir de ler Estação Perdido me lembrou de quem quero ser como escritor, assim como de qual tipo de livro de ficção eu quero publicar nos próximos anos. Até posso dizer que o romance de Miéville é uma influência importante, a partir de agora, no que eu me proponho a escrever; uma influência reversa, em negativo, porém.
Posso voltar a esse romance ? Não tenho dúvidas. Há decisões que dependem do contexto; quando ele muda, olhamos para trás e pensamos: assim como o “não” fez sentido naquela época, não faz mais sentido manter um “não” no tempo presente.
Quem sabe, no futuro, eu não volte aqui e escreva uma nova impressão de Estação Perdido, desta vez cheia de encantamento?
Primaveras em Paris e em Fortaleza
Não poderia encerrar nossa conversa de hoje sem deixar registrados os meus eventos recentes. Semanas atrás, como já tinha registrado aqui nessa newsletter, eu participei da programação da Printemps Brésilien, criada e coordenada pelo professor da Sorbonne Leonardo Tonus. Os três eventos foram muito legais, em especial aqueles em que encontrei primeiro alunos de Letras da Sorbonne e depois alunos dos ensinos médio e fundamental do Liceu Balzac. Em todos os casos, minhas falas foram em português, porque se tratava de encontros com estudantes de língua portuguesa. Foi importante demais eu conhecer o rosto da juventudade parisiense, desta juventude que é uma fatia da França Lusófona. Fiquei feliz de chegar na França e ser recebido como escritor e professor. Os momentos vividos lá continuam ecoando em mim. E ainda deu tempo de dar uns passeios, com direito a selfie, claro, na Torre Eifell (é só dar uma olhada nas fotos que postei lá no meu instagram). Abaixo, algumas fotos:



Uma semana após chegar de Paris, lá fui eu a caminho de Fortaleza para participar como um dos autores da Bienal do Livro do Ceará. Eu não voltava a Fortaleza desde 1999, ou desde os anos 2000. Fui muito bem recebido por lá e gostei demais da mesa que fiz com Márcio Benjamin e Roberta Cirne. A mesa foi mediada de forma brilhante pelo escritor e pesquisador Moacir Fio.

Quero deixar registrado também que semana passada conversei com uma turma de primeiro ano do ensino médio na unidade do colégio Poliedro, na Vila Mariana, a convite da professora Marnoly, que foi minha ex-aluna no Mackenzie. Falamos sobre o fantástico em Machado de Assis, já que eles estão lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas. Desde 2022, por causa em especial do Gótico Nordestino, tenho tido muitas experiências, presenciais e virtuais, de conversas com escolas. Descobri que gosto bastante disso. Há mesmo algo de muito precioso na adolescência. Penso se no futuro eu não deveria escrever algo específico para essa idade?
Por fim, foi uma honra ter dado a primeira Aula Magna da minha carreira para o curso de Letras do IF de Itaquaquecetuba, a convite do professor Rodrigo Faqueri. Conversei com os acadêmicos sobre literatura fantástica e alguns dos seus conceitos, com foco no horror contemporâneo feito em nosso país.
Agora, quero saber de vocês: que leituras vocês abandonaram e por quê? Me contem depois aqui nos comentários.
Até a próxima!
C.
eu queria poder abandonar as leituras obrigatórias da universidade nesse momento, infelizmente não posso pois aluna 🥲
Esse texto veio certeiro e a questão da dificuldade com o desapego é real. Estou numa insistência com "O sofredor do ver", os contos de Maura Lopes Cançado que vem logo depois de "O hospício é Deus", mas está sofrido.