Relendo uma livraria
No meu último post de 2024, falo de uma visita, semana passada, a uma livraria, o que me fez pensar sobre como enxergamos a realidade. E o que escolhemos não enxergar nela.
Quero (muito) o seu dinheiro
Inicialmente eu pensei em escrever um texto com uma retrospectiva dos meus eventos e das minhas publicações de 2024, em boa parte na tentativa vã de arrancar de vocês um pouquinho ainda de vossos suados salários, ou de convencer as pessoas do mercado editorial que leem esta newsletter a me programar para eventos em 2025.
Sim, porque além dos amigos secretos; da roupa branca do Ano Novo; da roupa íntima colorida que atrai sexo e prosperidade e mais sexo (torço por vocês); do peru da ceia e daquela viagem parcelada em várias vezes no cartão de crédito, é óbvio que vocês também estariam loucos para gastar dinheiro Naquilo-Que-Cristhiano-Produziu-em-2024.
Eu faria uma propaganda do meu curso sobre literatura brasileira na Escrevedeira (que está em promoção), ou das antologias e revistas nas quais publiquei contos ao longo do ano. E insistiria em como seria saboroso passar o Natal lendo delírios góticos do Gótico Nordestino, ou ler, numa rede na praia, os delírios labirínticos da estranha São Paulo que criei em Na Outra Margem, o Leviatã.
Mas, em respeito ao vosso cheque especial, eu nunca roubaria (em alguns casos literalmente) o leite de vossas crianças com essas demandas.
Pelo contrário.
No meu último post de 2024, quero compartilhar com vocês, que neste ano tantas vezes foram meus terapeutas-adjuntos, uma angústia a surgir quando este que vos escreve decidiu gastar dinheiro.
Então é Natal
Devido a viagens da minha família, decidimos antecipar a comemoração do final do ano/natal entre nós. E já é tradição que a gente faça uma troca de presentes. Por isso, semana passada, eu fui rapidinho em um shopping e depois em uma livraria para comprar alguma coisa para todo mundo.
Eu visito livrarias praticamente toda semana. Às vezes, mais de uma vez na semana. Tive, aliás, uma breve experiência como livreiro. Trabalhei na Livraria Cultura no momento áureo da empresa, na bela filial que existia no Recife Antigo. Nunca escrevi sobre esta curta, porém intensa, experiência profissional, que me marcou até hoje. Vale a pena pensar a respeito no futuro… Mas digo tudo isso para que vocês possam compreender o quanto livrarias são um dos espaços comerciais que eu melhor conheço numa cidade.
Sempre acreditei que eu sabia “ler” uma livraria.
Será que eu sei?
Ao entrar na livraria com o objetivo de comprar os presentes, a primeira coisa que eu não olhei foi a sessão de literatura. Minha família nuclear não lê literatura, ou seja, não consome romances, contos, crônicas ou poemas. Não adianta: foram vários anos de tentativas, até que eu desencanei. Não deixa de ser irônico que uma das principais atividades às quais me dedico seja praticamente indiferente aos meus familiares. Isso se extende na verdade à família no sentido mais amplo, tios, primos, tias, etc. São poucos mesmo os que leem literatura no meu mundo familiar.
Para além da literatura, me chama atenção o quanto o livro é um objeto em extinção para minha família. Há anos eu não os vejo com livros na mão, a não ser que seja a Bíblia ou livros ligados a estudo bíblico, ou livros de conteúdo técnico, cuja consulta vai resolver um problema prático. Mesmo esses, contudo, deram uma boa sumida da vida cotidiana. O mesmo vale para no mínimo 70% de todos os meus familiares, sejam paternos, ou maternos. O livro é um objeto estranho, talvez até desconfortável, para eles. Isso não significa que minha família não leia. Para além dessas possíveis fontes de leitura que citei no presente parágrafo, percebo que a leitura vem de maneira esmagadora do celular. São textos na internet, ou encaminhados pelo zap. Ainda há, por outro lado, espaço para jornais e revistas, seja em versão on-line/digital ou impressa.
Portanto, sou um escritor em uma família que não lê literatura, nem tem tido o hábito, em anos recentes, de comprar ou se interessar por livros. Nem sempre foi assim. Houve o espaço para a leitura literária, bem como para a compra de livros, contudo este espaço foi minguando. Em relacionamentos recentes que tive ao longo desses anos, me surpreendia se a família das minhas parceiras se interessava por isso tudo que gosto: “caramba, eles compram livros!”; ou “caramba, essas pessoas leem romances!”.
Como vocês acompanharam aqui, 2024 foi o ano da minha “virada psicanalítica”. Passei a não só fazer terapia, como a estudar psicanálise de uma maneira até sistemática, me focando em especial na leitura de Freud. Em 2025 espero continuar no mesmo ritmo, porém tenho sentido a necessidade de voltar a dialogar, também, com a filosofia, minha errática interlocutora desde meus tempos de adolescente. Sobre a filosofia, aliás, certamente vocês terão algum texto aqui na Linguagem Guilhotina. Pois bem, desde que passei a frequentar a psicanálise, eu passei a frequentar a sessão de psicologia das livrarias. Antes deste meu interesse, eu sequer saberia apontar, nas livrarias que frequento há anos, como a da Travessa ou da Vila, ou a Martins Fontes, onde se localizavam os livros desta área! Outro exemplo: na amável Livraria da Tarde, localizada aqui em São Paulo no bairro de Pinheiros, só mais para o final deste ano de 2024, quando voltei a frequentá-la, é que percebi que os livros de psicanálise ficam do lado do caixa. E que existe um bonequinho de Freud no meio deles!
Há tantas livrarias quanto há diferentes olhares que a visitam.
Meu interesse por um novo assunto reescreveu todas as livrarias que visito. Elas agora estão ainda mais largas. Dias atrás, ao procurar os livros que eventualmente pudessem interessar à minha família como presentes de natal, me surpreendi com a quantidade de obras sobre como criar um adolescente. Sobre como criar bebês! Procurei livros assim (no caso, sobre bebês e gravidez) para a minha irmã gestante, assim como aprendi onde numa livraria estão livros fofos sobre cachorros (para a minha mãe). Assim que Lorenzo, meu futuro sobrinho, nascer no próximo ano, eu vou com toda certeza, ao longo dos próximos anos, viver na sessão infantil das livrarias. Quem sabe, por causa do meu sobrinho, possa existir no futuro até um livro escrito por mim para crianças…?
O que acabo de descrever para vocês é uma experiência muito comum, mas que eu considero bastante enriquecedora, caso a gente pense nela um pouco. Uma das mais importantes perguntas que me fiz em 2024 foi: o que é essa realidade que existe à minha volta? Como eu a enxergo? Por que ela me surpreende? O que eu me neguei a nela enxergar? Por que não percebi o que devia ter percebido?
Nossas mentes, desde a infância, e nossas mentes dentro de um corpo sensível, desejante, aprendem que a realidade é difícil de lidar. A realidade nos constrange, nos ameaça, nos entedia; a realidade nos causa repúdio. Partes consideráveis dela são uma fonte de desprazer. Portanto, desde bebês, nós aprendemos a escrever uma realidade possível, uma realidade que é nosso mundo particular. Por outro lado, se falo de “realidade”, estou falando não só do que existe do lado de fora, como do lado de dentro da gente.
A regra é a mesma: somos difíceis de lidar. É possível imaginar o Sujeito na fronteira entre dois continentes: o mundo empírico e o mundo subjetivo que este Sujeito carrega dentro de si. Em ambos, a razão, o conhecimento, a ciência, produzem mapas e guias de leitura. Mas sempre escapará algo naquilo que Juan José Saer chamava de “espessura do real”. Portanto, vamos, por dentro e por fora, tateando, às vezes até as cegas, em busca de sentidos.
Ler ou reler a realidade, abrir e fechar nossos sentidos para ela, negá-la ou afirmá-la, isso tem sido um grande tema literário desde sempre. O amor, a fé, o poder, o sexo, a ambição, o vício e a loucura são algumas das mais frequentes circunstâncias, nos ensina a literatura, a rearticular o real em função do nosso desejo. Não temos escapatória: não há um mais além de nós mesmos e da linguagem que de nós transborda.
Acho que é possível exercitar uma dimensão da nossa vida interior, a da abertura de si em relação ao mundo. Uma metodologia, existencial, de ampliação da realidade. O aprendizado deste exercício pode ser alcançado a partir de muitos caminhos. O trauma é em definitivo um deles. Outro é a busca pelo conhecimento. Outro caminho é de verdade enxergar e ouvir o Outro. As artes são uma outra maneira de participar da multiplicidade do real.
Nenhum método, porém, funcionará, sem que primeiro a gente abra, dentro de nós, a janela que abraça a vida em sua sujeira e fascínio e perigo.
Este é meu último post de 2024. A Linguagem Guilhotina entra em um breve recesso, mas devo voltar a publicar em janeiro, porque me divirto demais escrevendo meus textos para vocês. Estou bem a fim de comentar aqui a nova versão de Nosferatu, que devo assistir na primeira semana de janeiro no Nordeste, onde passarei Natal e Ano Novo. Volto, porém, já no começo de janeiro para São Paulo, porque muito trabalho, tanto acadêmico, como literário, me espera em 2025.
Desejo de coração que vocês tenham momentos bonitos nestes últimos dias de 2024 e nos primeiros de 2025. De minha parte, sinto que vivi muitas vidas em um ano só… Adoraria ter um pouco mais de sossego no ano que chega, por que não? Mas só um pouco, claro - sossego demais nunca é bom. Mais jovem, eu desprezava a comoção do final do ano. Que diferença faz se depois do dia 31/12/24 vir o 01/01/25?, eu questionava. Em parte ainda concordo com meu Eu do passado, porém com o tempo aprendi a respeitar o poder dos rituais. Somos bichos simbólicos e nossos rituais, esses também, são gestos de criação de realidades.
Encerro com um trecho de um ensaio de Borges dedicado ao tempo: “Por isso o problema do tempo nos afeta mais que os outros problemas metafísicos. Porque os outros são abstratos. O do tempo é nosso problema. Quem sou eu? Quem é cada um de nós? Quem somos? Pode ser que algum dia saibamos. Pode ser que não. Mas enquanto isso, como disse Santo Agostinho, minha alma arde porque desejo saber”.
Fui conhecer a Eiffel, Chris, quando estive em SP. Criei um canal no YT para divulgar livrarias diferenciadas e bibliotecas municipais. O terceiro vlog em SP vai ao ar em breve. Está sendo editado: Rocandel do outro lado do mundo. Adorei o teu texto! Parabéns! Boa viagem e Boas Festas! 🎄🌀🎈
Minha cidade não tem uma única livraria... Só uns stands fixos que ficam no meio de uma praça: livros 1,00. Livros 10,00. Eu peno para encontrar alguma ali.
Quando eu trabalhava no centro do rio, passava meu horário de almoço na livraria da travessa da rio branco. Era o lugar mais lindo e mágico!