Olho de vidro (Conto inédito)
Bruxaria! Crimes! Milícias! Maldições! Publico hoje um breve conto de horror, de minha autoria, ambientado em Pernambuco.
Nesta edição, que não é numerada como as edições regulares, compartilho com vocês um conto inédito em livro. Este conto foi publicado em uma edição especial do suplemento literário paraibano Correio das Artes no começo de 2024. Republico agora uma nova versão dele, com algumas alterações. Quando criei essa newsletter, não cogitei publicar textos meus de fição, mas decidi a partir de hoje experimentar esse formato esporadicamente. Quem sabe dois contos de fição por ano, ou um micro-folhetim? Ao longo do ano, aliás, contos meus serão publicados em diferentes lugares, inclusive em inglês. Na medida que os contratos de cessão de direitos permitirem, os republico aqui também. Todos vão muito para o terror e para o estranho, inclusive o conto abaixo, que pode disparar alguns gatilhos. Se você não se sente à vontade com isso, pula essa edição e segue para próxima. Sim, continuo macabro.
Olho de vidro, conto inédito de Cristhiano Aguiar
(Câmeras ligadas. O delegado começa a falar:)
Teve esse cabra ruim, tão ruim que no crime tinha apelido de Zé Alminha. Rodou por aí, não foi?, rodou nos grupos de zap os vídeos da família toda morta e só ele vivo, gritando no escuro, apertando com as duas mãos a própria cabeça.
Zé Alminha foi policial ruim. Acabou expulso da corporação. Daí entrou em esquema de gangue de banco, mas era tão doido, tão desmantelado, que quase sai morto pelos próprio cujos dele. Aí se juntou com outras peça boa pra matar pra vereador e pra dono de terra. Muita gente tinha medo dele, até por causa de quem valia por ele. Hein? Se conheci ele? Demais! Olho de vidro, eu dizia pros colegas. Matador que nem ele tem esse olho de vidro, porque gente que nem ele tá seco lá dentro, tu não acha? A gente encara um olho-de-vidro e o que vê? Nossa alma de volta. A nossa alma arrepiada e toda torta.
Teve então um serviço.
Era de risco, podia trazer atenção de mídia, mas o bicho era doido e foi lá e fez. Envolvia negócio de herança. A gente sabe que o mando foi de um vereador, que tá preso. A vítima era parente do mandante, era uma véia que morava sozinha num sobrado em Olinda. Diziam… o povo dizia que a véia era bruxa, todo mundo no bairro evitava a mulher. Zé Alminha e mais três elemento invadiram a casa dela. Acharam a mulher ajoelhada na sala, com vela acesa no chão, uns desenho esquisito no piso, uns livros com desenho estranho.
Um dos elemento confessou que teve medo, tentou convencer Zé Alminha a desistir. A mulher encarava os bandidos com ódio e com um sorrisinho. Os cabra ficaram com medo dela e do cenário todo. Falaram de encosto, de livro de São Cipriano, de magia, de bruxaria. Até Zé Alminha duvidou se deviam prosseguir com a encomenda. Mas mataram ela no fim. Bom, vocês sabem, né? Porque pra Zé Alminha, quem contrata tá buscando uma mensagem. Passional. Por isso ele cortava cabeça e humilhava os cadáveres. Se era pra ser mensageiro, tinha de ser mensageiro de morte apaixonada. Deixou o corpo dela todo estragado…
Foi depois do serviço que Zé Alminha enlouqueceu, ou ficou amaldiçoado. Vocês escolhem. Tem gente que acredita em tudo. Eu de minha parte eu acho que não devia ter mexido com a bruxa. Como? Acreditar, não acredito… Mas não se mexe com bruxa nem se ela não existir! (o delegado fez um sinal da cruz, mostrou para a equipe a medalha de São Bento pendurada no seu pescoço). Minha opinião. No bar, no supermercado, na academia, na praia, ele de repente vinha com uns delírio. Da cabeça dele rolando pelo chão. O homem às vezes gritava de dor! Dizia que sua cabeça tava sendo degolada. Aí o negócio passou pra filha caçula. A menina gritava na escola, ou batia a cabeça na parede de casa. Foi pro filho também e no final pegou na mulher dele, ouvi falar que ela menstruava sem parar, quase foi internada.
Pense! Uma família gritando, batendo cabeça, desmoronando. Isso durou o quê umas duas semanas? Foi. Não tenho pena.
Na noite que gravaram os vídeo que viralizou, alguém chamou a polícia.
O bandido tinha uma casa de praia no Cabo de Santo Agostinho. A vizinhança demorou pra abrir o bico. Na noite do acontecido, vizinhos confessaram ouvir gritos, além do choro das crianças. (O delegado hesita. Pede uma água. Encara a câmera. Close-up em seu rosto). Alguém disse ter visto uma Sombra Encurvada. Isso. Desse jeito mesmo: encurvada, era uma Sombra que ficou zanzando pra lá e pra cá pela casa, pelas ruas, dedos longos, pontudos. O Cabo tava aterrorizado.
Foi essa a cena que a polícia encontrou quando invadiu a residência de Zé Alminha: as crianças sem cabeça. A mulher sem cabeça. Só os cadáver vazando. Sangue por toda casa. Sem arma do crime. As cabeça sumidas até hoje. Hein? Positivo. Nunca se encontrou cabeça. Até hoje.
No centro da sala, ele tava ajoelhado.
Zé Alminha ajoelhado e gritando.
Segurava a própria cabeça com as mãos e dizia: ai ai ai ela vai cair, ela vai, basta só eu soltar.
Espero que tenham gostado desse breve conto. Se quiserem, deixem comentários, dúvidas ou impressões sobre ele, responderei com prazer. Para quem quiser ler a edição original onde ele foi publicado, é só clicar aqui e vocês podem baixar o pdf do Correio das Artes. Há entrevistas comigo e com outros autores e autoras paraibanos que têm explorado o medo (e a política) nas suas ficções. O Correio das Artes fez uma edição excelente e me sinto muito orgulhoso de ter participado.
Até a próxima!
C.
Gostei da explicação do delegado pro olho de vidro; gostei também do final, do alminha segurando a cabeça
Macabro e sanguinolento como o povo gosta! Conto ótimo, Cris