Linguagem Guilhotina #8 - O Livro
Dia 23/04 foi o dia Mundial do Livro. Resgato para vocês um breve ensaio sobre livro e leitura que escrevi em 2021.
Livro
O que significa, para mim, para você, um livro?
Em uma famosa conferência, o escritor argentino Jorge Luis Borges afirma: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro”. Ao longo da mesma conferência, Borges justifica o seu assombro. O livro, segundo sua visão, é o resultado da memória e da imaginação humanas. O encontro do leitor com um livro, conclui, é uma forma de felicidade.
Eu não poderia concordar mais com isso. Outro conhecido escritor, famoso pela criação de assombros e reinos fantásticos, é o britânico Neil Gaiman. Também em uma conferência, Gaiman reflete sobre o livro e o compara a um tubarão. Ao longo das últimas décadas, vimos o nascimento, triunfo e decadência de uma série de mídias. O vinil, o CD, o VHS, a fita K7, o blu-ray, o MP3 (lembram do Napster e do Winamp?). Enquanto isso, lento, eficaz e sobrevivente, o livro observa tudo, se recusando, como um tubarão pré-histórico, a ser extinto.
Não sei se todos vocês sabem, mas tive uma breve passagem na minha carreira como vendedor de uma rede de livrarias. Uma vez, em uma reunião com um dos meus chefes (estão falidos, aliás), ouvi dele que o negócio das livrarias não era vender livros, e sim “informação”. Sem dúvidas, um livro é composto por informação, que se materializa diante de nós na tela ou em uma folha de papel. No entanto, eu creio que o livro não continua a ser amado por nós, porque ele é pura utilidade.
Não.
O livro é uma convite ao afeto e encontrá-lo é o início de um possível relacionamento. Todos que convivemos com os livros temos ao menos um livro com o qual, independente do seu conteúdo, criamos uma relação visceral, quase amorosa. Talvez seja o primeiro livro que ganhamos, talvez tenha sido a herança de alguém que partiu e não está mais entre nós, talvez seja o livro daquela nossa escritora favorita... Cultivamos, ao longo da vida, projetos, amores, amizades e, igualmente, livros.
A literatura adora os livros. Escritoras e escritores ao longo dos séculos nunca deixaram de tratar dos livros como um tema apaixonante, criando com seus leitores e leitoras um jogo secreto de cumplicidade. Às vezes, nos romances e contos, os livros nos enlouquecem, ou nos libertam das amarras sociais; outras vezes, os livros são representados como portadores de poderes mágicos e nos transportam para novos mundos, estranhos e desafiadores; os livros podem até ser nossos primeiros amantes, como no famoso conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector.
Falei de autoras e autores famosos. Falei de livros como espelhos de outros livros. Falei de tubarões. Mas o que significa o livro para cada um de nós, leitores e leitoras de carne-e-osso, pessoas à mercê do tempo e da história? Um ex-orientando meu uma vez me confidenciou que ele era a primeira pessoa da sua família a conseguir comprar um livro. Há alguns anos, em sala de aula, levei para uma turma de Letras alguns livros de contos de fadas bem bonitos, luxuosos; capa dura e ilustrações coloridas; papel de alta gramatura - macio e cheiroso. Parte da turma folheou os exemplares extasiada. Uma aluna, no entanto, teve uma reação que nunca esqueci. Ela se recusou a tocar os meus livros. Eles pareciam, para ela, um bicho esquisito, insólito. A aluna me disse, depois, que aqueles livros lhe aparentavam ser um escândalo de luxo e preços altos. Consigo entendê-la. Em um país em que, a cada ano, mais e mais livrarias fecham, bibliotecas públicas são largadas às traças e em que o desemprego, a crise econômica e a violência esmagam a vida de milhões de brasileiros, o livro pode soar como um luxo distante, ou imerecido…
Desta maneira, livros significam para nós formas, às vezes cruéis, de distinção ou de humilhação. Livros são nossos desejos e aspirações. Ou instrumentos – nesse sentido de nenhum modo diferentes de uma faca, de um algoritmo, de um motor de automóvel – para a resolução de um problema e para a obtenção de um objetivo. Em seu ensaio “Obsessão positiva”, a grande autora de ficção científica Octavia E. Butler conta que sua mãe tinha o costume de ler para ela histórias de ninar. Com o passar do tempo, a jovem Butler passou a se interessar cada vez mais por aquelas histórias, até que sua mãe um dia lhe disse: “- O livro está aqui. Agora leia você”. Butler, então, comenta no ensaio: “Ela não sabia o que estava tramando para nós duas”. A lição de Butler é preciosa, porque ela contém uma sabedoria que me parece essencial. O entendimento de que todo livro tem o potencial de reescrever a gente por dentro.
🤖 O que estou ouvindo?
Para treinar o inglês, que tento desenferrujar, tenho ouvido muito o podcast The Book Review, do NY Times. Os editores de livros do jornal compartilham as suas leituras com frequência nos episódios. Além disso, eles também entrevistam vários escritores. O foco é a cena literária estadunidense, que muitas vezes está distante de nós brasileiros, mas vale a pena conferir.
🥷🏻 O que acabei de ler?
Terminei de ler Permission, de Saskia Vogel. É o segundo livro de ficção, em inglês, que leio desde que cheguei por aqui. Saskia é amiga minha. Eu a conheci na época dos eventos da edição especial da Granta de jovens autores brasileiros, da qual fui um dos autores em 2012. Depois, em 2013, nos reencontramos na residência literária da University of East Anglia, na Inglaterra; fiquei alguns dias hospedado na casa dela, em seguida, em Londres. Saskia escreve um romance geracional, talvez um retrato da parcela cult da geração millennial. Sua protagonista é uma atriz frustrada, em luto pela perda do pai, e que obviamente faz todas as escolhas erradas na hora de se relacionar com homens e mulheres. O sexo, em especial BDSM, é a chave do romance - uma ilusão e ao mesmo tempo uma chance de cura.
🐣 O que estou lendo agora nas horas vagas?
Terminei o primeiro capítulo de Terráqueos, romance da japonesa Sayaka Murata. Leio também em inglês, mas o romance saiu traduzido no Brasil por Rita Kohl, a tradutora de Murata no Brasil e a pessoa que me indicou a autora. Estou adorando: é a história de uma mulher que acredita que possuei poderes mágicos, e que também pode ser uma extraterrestre. Poesia, imaginação e nonsense discreto parecem ser as tônicas. Vamos ver como segue e leitura, que será lenta, porque, além do meu livro novo (falo dele numa futura edição) e das minhas pesquisas, surgiu um freela que preciso fechar dia 04 de maio.
Hoje a edição foi de ritmo sossegado, quem sabe afetivo, de amor pelos livros e pelas leituras. Na próxima edição, comento com vocês a experiência de ter, no começo deste ano, gravado o audibook do Gótico Nordestino. Até já!
C.
Pô, a passagem do livro luxuoso que a aluna se recusou a tocar me fez lembrar daqueles livros infantis em que você vira a página e castelos se abrem, dragões batem asas... Ter um daqueles é um sonho de infância que até hoje não realizei.
Precisamos tanto dessa visão do livro pelo viés do afeto e com a consciência de tudo o que ele representa para as pessoas... Obrigada por esse texto lindo.