Linguagem Guilhotina #7 (V.2) - Meu próximo livro de ficção: e agora?
Compartilho com vocês a finalização do primeiro rascunho do meu novo livro de ficção. E indico os próximos passos.
Manuscrito encontrado em uma garrafa
Escrevo no sábado à noite, embora vocês tenham recebido esta carta na manhã do domingo.
Escrevo com o objetivo de compartilhar com vocês uma alegria: acabo de colocar o ponto final na primeira versão do meu novo livro de ficção, que será um romance.
Tenho muitas dificuldades em tudo. Terminar livros é uma delas. Concluir processos de modo geral, na verdade. Portanto, estou muito feliz por ter conseguido finalizar a primeira versão do meu manuscrito. Enquanto digito, escuto o álbum dos anos 70 da banda Ave Sangria, clássico do rock psicodélico pernambucano.
Quero compartilhar brevemente com vocês uma das linhas que compõem a epígrafe do romance e um parágrafo do livro. Depois, comento brevemente o processo de escrita e os próximos passos. Daqui em diante, a não ser que a editora deseje, nenhuma outra linha será publicada do romance (e sobre ele) até o seu lançamento. Quando será? Conversemos.
Uma linha da epígrafe do romance:
Dissolva-se, portanto, minha vida
Um parágrafo:
Avalio se os sonhos são o caminho da salvação, ou da danação. Eu agarro a nossa jornada - ela escorrega. Eu e você, mainha, temos sonhos-dilúvio desde que chegamos. Nos sonhos, pensamentos de amor estão no limite para se tornar pensamentos de ódio, como roupas que ficam melhores se usadas pelo avesso.
A escrita
Eu tive a ideia para este romance em 2018.
Cheguei a escrever pelo menos umas vinte páginas daquela ideia original, porém ela não evoluiu. Voltei para as páginas em 2019; nada. 2020, a mesma coisa. Desisti. Em 2023, após finalizar meus compromissos acadêmicos em Princeton e fechar meu livro de ensaios sobre literatura brasileira, tentei e fracassei em escrever, ainda nos Estados Unidos, um livro de ficção novo. Tentei uma ideia - fracasso. Tentei uma segunda ideia - do fracasso, sobraram 25 páginas aproveitáveis, que estão na gaveta e vão fazer parte de um projeto que pode ser interessante, mas no qual só trabalharei quando, em algumas semanas, eu finalmente for embora do Brasil outra vez.
Pois bem. Não é que a ideia de 2018 voltou a me assombrar? Nestes momentos, eu vivo a vida num estado de alerta induzido. Quero dizer que tento treinar minha sensibilidade para que tudo de alguma maneira seja filtrado pela Ideia. Disso, sai algo. Estava eu uma noite em casa, no meu sofá, assistindo a um documentário sobre fungos na Netflix, quando uma cena e uma frase chamaram minha atenção.
“Porra, é isso, é isso!” - eu disse pra mim mesmo. Em poucos segundos, toda a ideia de 2018 se desdobrou em um projeto narrativo viável, que eu conseguiria escrever. Não somente isso, como três das personagens principais do romance nasceram ali, naquele minuto, bem como o conflito básico a envolvê-las, sendo este conflito um dos motores da narrativa.
Bastava só escrever. Era Agosto de 2023.
Trabalhei o quanto pude, dando prioridade máxima ao projeto. Consegui trabalhar de agosto a abril escrevendo quase todo dia. Se eu não escrevia, lia, rascunhava, pesquisava elementos que pudessem alimentar o romance.
Para quem leu meu livro mais recente, Gótico Nordestino, posso dizer que o livro novo é outra vez literatura fantástica, porém será mais experimental, mais poético e menos vinculado ao horror. De certa maneira, minha escrita retorna um tanto para a pegada do meu livro de contos anterior, Na outra margem, o Leviatã.
Não posso dizer título, não posso dizer número de páginas, mas digo que ele se passa no agreste da Paraíba, com breves passagens pela zona da mata, representada por João Pessoa e Recife.
Cara, você terminou seu livro. Parabéns. Quando é a pré-venda?
Há, felizmente, uma longa jornada a ser percorrida. Por que “felizmente”? Não é sempre melhor escrever e publicar o mais rápido possível? Não há regras quanto a isso, porém considero que, a partir de agora, eu e o mundo que criei precisamos dar um bom tempo um ao outro. Com esse tempo, acredito que terei oportunidade de potencialmente melhorar o livro.
Primeiro, como disse no começo desta carta, eu confio no manuscrito, gosto dele, me fez bem viver em seu mundo tantos meses. Mas estou apaixonado pela minha criação. É preciso criar mecanismos de distanciamento para que eu consiga avaliá-lo melhor. É uma etapa perigosa. À distância, passo a sentir um desgosto pelo que criei e tendo a me desconectar totalmente. Simplesmente abandono, caio fora.
Vencida esta etapa, eu vou, em algumas semanas, voltar ao romance e reescrever partes dele. O manuscrito, por exemplo, está cheio de erros de continuidade. Datas não batem. Personagens estão incoerentes. Pode ser que surja a necessidade de aprofundar uma das linhas narrativas ainda mais; ou criar uma nova, desdobrando pontas deixadas em aberto.
O texto passará por um processo de afinação, portanto.
Nestes dois últimos meses, de repente veio tudo que faltava na minha cabeça, mas eu não tinha o tempo, nem o fôlego, para despejar dezenas de páginas de histórias de uma vez só. Fui escrevendo as linhas narrativas (seja no computador, seja à mão; eu alterno a escrita entre esses dois meios) e revisando muito pouco. Nos últimos anos, tem sido assim o meu processo: eu escrevo a história no seu fluxo primal, em sua dimensão de puro enredo e falas. Posteriormente, eu a lapido. Faço cortes, insiro novos trechos, reescrevo, tento aprofundar a matéria-prima bruta. Troco coisas de seus lugares originais. Isso leva um bom tempo, até porque só consigo escrever nas horas vagas de todos os outros trabalhos, ou nas férias.
Após a lapidação e reescrituras, deixarei o manuscrito outra vez descansando. Quanto tempo? Não sei. Quando sentir que devo trabalhar mais uma vez nele, eu o releio e faço mais correções (É frequente que eu faça isso numa versão impressa. Minha impressora está há mais de um ano quebrada, ou seja, vou ter que providenciar o conserto). Primeiro à mão, nas folhas de papel. Depois, as passo para o arquivo do computador.
Aí, eu tenho o que eu poderia chamar de uma versão beta do livro, que enviarei para minha agente e para meu editor. Se eles não gostarem, não adianta: é gaveta. E começo do zero algo novo.
Se gostarem e um contrato de publicação for assinado, haverá um outro longo processo editorial que envolve preparação do meu original, sugestões do meu editor, revisões textuais. Somente quando tais etapas estiverem finalizadas, é que o livro está pronto para ser impresso e vendido.
Por que fazer esta carta?
Porque eu quero simplesmente compartilhar. Tenho vivido batalhas e vitórias e dado valor à experiência de cada uma delas.
Mas escrevo aqui porque, desde 2022, tem rolado uma pergunta recorrente: quando sai o próximo livro? Embora me sinta pressionado, também sinto alegria: qual escritor não quer ter leitores?
Vocês agora sabem que existe um novo livro. O seu ano de publicação depende, primeiro, do livro ser bom. Não vou jogar no mercado uma tranqueira, nem submeter meus amigos e amigas ao constrangimento de terem que ler algo ruim. Sempre brinco dizendo que a motivação principal para escrevermos o melhor livro possível não diz respeito a mudar o mundo, ganhar prêmios, sentir satisfação pessoal. Trata-se simplesmente de um gesto de respeito às pessoas próximas: se o nosso livro tem qualidades, elas não precisarão exercer a gentileza compulsória.
Escrever é muito perigoso
Daqui até lá, torço para que vocês ainda estejam caminhando comigo. Torço para que meu trabalho tenha valido a pena.
Termino com duas citações da escritora polonesa Olga Tokarczuk. Seu livro de ensaios Escrever é muito perigoso foi uma grande inspiração para o processo de escrita do meu romance. Aí estão as duas citações:
Existe mais um conceito fundamental que utilizo no meu trabalho: é a excentricidade. […] Trata-se de uma posição peculiar assumida na percepção do mundo: da saída do centro para além de uma experiência da realidade comum, ordenada e aceita por todos. É a busca consciente de uma perspectiva que ainda não seja universal, mas através da sua novidade mostre o que não foi enxergado, o que foi omitido. Quem não for excêntrico o bastante não será bom escritor. A nossa excentricidade interior tem que ser tratada com cuidado e carinho porque só essa tendência centrífuga nos permite ver o que se encontra e acontece além do reconciliado horizonte social.
Por fim, quero afirmar com toda a convicção que não há arte sem uma pitada de irracionalidade, já que a arte exprime sempre a totalidade da experiência humana, em que cabem, de fato, intuição e obsessões, loucura e fantasia, tanto quanto ideias. A linguagem, por sua vez, é a faca e o garfo com os quais consumimos com elegância a realidade.
Beijos para vocês,
C.