Linguagem Guilhotina #7 - A edição da Ficção Científica 👽
Nesta edição, vocês lerão uma conversa sobre Ficção Científica com uma das ótimas vozes da nossa literatura contemporânea: Ana Rüsche. Também há dicas de canais do YouTube sobre literatura.
Entrevista com Ana Rüsche
“Sinceramente, considero que o espírito de nossa época não nos permite entender o mundo sem meditar sobre a tecnologia, para mim, a tarefa última da ficção científica e há chances de assistirmos uma ampliação dessas ideias aqui.”
Ana Rüsche é uma das minhas autoras favoritas hoje na literatura brasileira contemporânea. Impressiona o escopo do seu trabalho: crítica literária, poesia, ficção, docência, pesquisa acadêmica. Da ficção científica a questões de gênero, Ana sabe tudo (e ela ainda é especialista em cervejas, portanto quem quiser saber de alienígenas e biritas, ela é a pessoa certa a perguntar). Finalista do prêmio Jabuti e do prêmio Argos, sua novela A telepatia são os outros (Monomito, 2019) ganhou o prêmio Odisseia de Literatura Fantástica. Doutora em Letras pela FFLCH-USP, atualmente realiza pesquisa de Pós-Doutorado no departamento de Teoria Literária e Comparada da FFLCH-USP, a respeito de ficção científica e mudança climática. Ana conversou comigo sobre ficção científica, em especial a nacional. Além disso, compartilhou o seu próximo projeto, um romance de viés mais realista, mas que não abre mão de debater ciência e tecnologia, também.
Ana, o quão viável uma carreira na Ficção Científica (FC) é, hoje, em nosso cenário atual? Eu sinto que tem havido muito espaço para a Fantasia e para o Horror nacionais, ou para outras formas de literatura insólita, mas a ficção científica brasileira parece continuar numa situação de marginalidade, a ponto da palavra muitas vezes nem ser usada para promover um novo livro que claramente é FC. Qual a sua leitura disso e como você posiciona tudo isso no contexto da sua carreira?
Concordo que muita gente evita o rótulo “ficção científica”, embora, na piada mais famosa sobre o assunto, ficção científica é igual pornografia: se você bate o olho, logo sabe que é. Assim, mesmo que se usem outros nomes, o relevante, para mim, é manter a chama da literatura crítica sobre o avanço tecnológico. A mudança climática também acelera essa incorporação, considerando que intelectuais de outras áreas se valem frequentemente dessas narrativas como uma forma de conceder escala e horizontes imaginativos necessários para lidarmos com essa emergência, vide Donna Haraway ou Timothy Morton — minha atual pesquisa de pós-doutorado trata bastante disso.
Agora, é inegável a ampliação das possibilidades de escrever ficção científica no Brasil, inclusive, nem acho que essa pergunta seria possível no começo do século XXI. Um destaque é a popularidade das distopias — da onipresente 1984, de George Orwell até a brilhante Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (Global). Infelizmente o interesse vem à reboque de uma necessidade de compreender a ascensão da direita mais reacionária. Depois, a leitura de Ursula Le Guin e de Octavia Butler tornou-se muito frequente, assim como publicações estrangeiros quase concomitantes a seu sucesso em inglês, a exemplo de Salmo para um robô peregrino, de Becky Chambers (Morro Branco) e É assim que se perde a guerra do tempo, de Amal El-Mohtar e Max Gladstone (Suma). Na crítica, recebemos uma bela tradução de Arqueologias do futuro, obra de Fredric Jameson fundamental sobre FC (Autêntica).
Também é digno de nota o resgate de autorias brasileiras, com republicações de André Carneiro (Avec) e Dinah Silveira de Queiroz (Instante) — o caso da Dinah contou inclusive com obras de crítica e disciplinas acadêmicas. Por fim, há um florescimento de editoras independentes, podcasts e revistas se dedicando à produção nacional. O meu A telepatia são os outros saiu pela Monomito que junto a outras editoras, como Arte Letra, Avec, Bandeirola, Dame Blanche, Draco, Plutão, Urutau, ajudam na circulação.
Agora, ainda não temos uma produção em casas editoriais de maior porte, com uma ou outra exceção. A antologia Mundos Paralelos: Ficção científica, da editora Globo, que tive o prazer de organizar, voltada a estudantes, poderia ser citada, com contos de Alexey Dodsworth, Enéias Tavares, Iana A., Jim Anotsu, Lady Sybylla, Roberta Spindler, Toni Moraes e Vic Vieira Ramires (2023). Sinceramente, considero que o espírito de nossa época não nos permite entender o mundo sem meditar sobre a tecnologia, para mim, a tarefa última da ficção científica e há chances de assistirmos uma ampliação dessas ideias aqui.
Diante de tudo, procuro escrever a partir de um lugar de honestidade. Assim, se determinado conteúdo precisa da forma da poesia, escrevo em verso. Se é uma história para ser narrada em uma base realista, assim o faço. Se precisar filosofar com robôs, esse bonito imaginário estará à minha disposição. Agora, se minha literatura vai bater com o coração das gentes, já não sei. Tudo é futuro.
Eu gosto bastante da dimensão humana e poética da sua ficção científica. Suas histórias são mais íntimas, abrindo mão do traço épico tão associado ao gênero. Me identifico com essa abordagem. Gostaria de saber se faz sentido esta leitura e como você chegou à sua escrita tão particular deste gênero.
Bom, fui, sou e serei escritora de poesia — publiquei alguns livros no gênero. Isso me permite um trabalho mais elástico com a linguagem, concedendo uma caixa de ferramentas com algumas parafusadeiras extras. Assim, acho lindo, por exemplo, a apropriação que Anthony Burgess faz de seus estudos sobre James Joyce ao criar a linguagem de Laranja Mecânica. Estou longe de criar tantos neologismos como Burgess (e muito menos cenas com violência extrema), mas gosto de emprestar muitas coisas de outros lugares e deslocá-las para a FC. Um exemplo é o conceito de parálise, tão presente nos Dublinenses, de Joyce, que termino aplicando na composição de algumas de minhas personagens.
Tenho ainda a sorte de ser docente e de produzir crítica, muitas vezes sobre a literatura escrita por mulheres — a exemplo deste artigo sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles. São grandes aprendizados sobre como construir essas tensões em lugares privados e trazer à tona questões menos visíveis. Preciso ainda dizer que conto com boas amizades e converso muito com meus colegas do podcast Incêndio da Escrivaninha, o Thiago Ambrósio Lage (recentemente lançou o livro de contos Romantífica) e a Vanessa Guedes, da famosa newsletter Segredos em órbita. Esse diálogo sempre nos ajuda a ter ideias melhores.
Entre as várias vertentes da ficção científica, qual você acha que são as mais relevantes, ou interessantes, para lidar com os vários impasses do mundo contemporâneo? Poderia dar exemplos?
Cada vez mais gosto de textos que carregam hibridismos — tanto na forma literária quanto no assunto. Talvez por meu caráter anfíbio, de ser crítica e também poeta, procuro referências que carreguem essas tensões e borrem as fronteiras entre horror, fantasia e FC, além de carregarem a marca do trabalho de linguagem condensada. Em especial, o new weird de China Miéville, Jeff VanderMeer e T.P. Mira-Echeverría.
Como estudo mudança climática e literatura, não poderia deixar de indicar obras de Chinelo Onwalu, Kim Stanley Robinson, Octavia Butler, Rita Indiana e Ursula Le Guin. No Brasil, uma história que recentemente ganhou meu coração foi a novela “Bugônia”, de Daniel Galera, que está nesse lugar do híbrido, discutindo a questão ecológica num trabalho de linguagem muito bonito.
O seu Telepatia são os outros está em processo de tradução para o italiano [Correção: a tradução já foi lançada, mas decidi manter a versão original da pergunta]. Poderia comentar como tem sido esse processo? Além disso, poderia compartilhar a experiência de ser traduzida, mas também de ser tradutora?
O “Telempatia” foi lançado pela editora italiana Future Fiction em março, com tradução de Gabriella Goria, e estarei no Salão do Livro de Turim em maio para prestigiar o lançamento. É meu terceiro trabalho com a editora. Primeiro, participei de uma antologia internacional com um conto em “Solarpunk: Come ho imparato ad amare il futuro” (Como aprendi a amar o futuro, org. Francesco Verso e Fábio Fernandes, lançada em português pela Plutão Livros). Depois, como organizadora, participei da edição de Meteotopia — Futures of Climate (In)Justice, junto a Bodhisattva Chattopadhyay e Francesco Verso (Universidade de Oslo e Future Fiction), uma antologia em inglês sobre ficções climáticas, com autorias do Sul Global.
Sou ainda muito orgulhosa dos laços que mantenho com autorias da América Latina, principalmente com mulheres. Um conto meu, “O mistério da contrabandista”, foi traduzido e narrado ao espanhol para o podcast Las Escritoras de Urras, e estou fazendo, neste momento, um outro trabalho para uma editora estrangeira. Tive ainda a honra de traduzir o conto extraordinário e premiado de Gabriela Damián Miravete para a revista Mafagafo, “Sonharão no jardim” e, com o projeto Filamentos, que mantenho com a editora Bandeirola, conseguimos coletivamente publicar o conto “Semente”, de Iliana Vargas (trad. Cris Oliveira). Na minha newsletter, também entrevistei o César Santiváñez, do coletivo peruano Qhipa Pacha. São ideias belíssimas e que soam muito próximas de nós.
Como está o próximo livro? Dá para comentar algo?
Claro! É um romance com tratamento de prosa literária a respeito de duas irmãs nos dias de hoje em São Paulo, em contraste a um trio de amigos em 1985 em Ubatuba. Nos temas, estão o feminismo, a homoafetividade, a questão ecológica e a democrática, considerando que decidi narrar justamente os meses do adoecimento e morte de Tancredo Neves. O eixo que costura as duas histórias é a poesia, inventei a obra de um poeta, e o “prata-viva”, uma substância psicoativa fictícia. Não se trata de ficção científica, embora lance mão de discutir alguns tópicos científicos para certa verossimilhança ao narrado.
O original passou por várias leituras, crítica, sensível, beta, e está agora nas mãos de minha agência, a Magh. Espero que logo consigamos encontrar uma casa editorial para que se torne capa, tinta e cheiro de papel.
Direi sem meias palavras: há muita bobagem sendo dita sobre literatura por aí, em especial na internet. Os influenciadores digitais que produzem conteúdo sobre livro estão sob meu radar há anos, porque toda forma de crítica literária me interessa. Inclusive, tenho publicação acadêmica sobre o tema, provavelmente uma das primeiras na área de Letras sobre Booktubers. Infelizmente, sinto que parte dos perfis/canais mais famosos produzem um conteúdo que julgo de baixa qualidade. Há três canais, contudo, entre outros bem interessantes, que quero indicar para vocês. Um dos focos dos três é a produção contemporânea, em especial brasileira. Três dos que mais gosto são:
Literatura e Antropoceno
Voltando à ficção científica, quero recomendar bastante um ensaio que saiu este mês no Jornal Literário Pernambuco. De autoria do escritor e pesquisador André Araújo, o ensaio tem como título “Quando o familiar se tornou alienígena? Sobre antropoceno e ficção". Araújo pensa sobre como a literatura brasileira tem participado do debate a respeito das questões climáticas. O texto dialoga com o romance de 30, mas também com obras recentes, entre elas o meu Gótico Nordestino. O conto "Firestarter", publicado em meu livro, é um dos pontos de partida do ensaio.
Espero que a edição tenha animado vocês a mergulhar no instigante mundo da Ficção Científica. Imaginar o possível é uma vocação natural para a literatura - a Ficção Científica a cumpre com eloquência. Também me digam se curtiram o conteúdo produzido pelos YouTubers que compartilhei. Depois, farei um sobre perfis do Instagram. Me indiquem, nos comentários, quais produtores de conteúdo vocês gostam de consumir na internet.
Ah, algumas pessoas estão me pedindo um tipo de diário de viagem da minha temporada em Princeton e em New Jersey. Interessaria a vocês? Me contem e tentarei fazer algo.
C.
Adorei a newsletter e a entrevista com a Ana!! Tá aí um gênero que eu quero explorar na minha própria ficção... Era até o tema da minha newsletter da semana...
Fiquei tão contente com essa entrevista! A Ana é a maior manjadora de ficção científica do Brasil. Não é de agora, é algo que vem sendo construído ao longo de muitos anos de estudo e leituras (a mulher lê simplesmente TUDO, do passado e do presente), ela leva muito a sério essa pesquisa. Além disso, é amiga daquelas que a gente vai até a alguma lua de Saturno se ela chamar.
ps: obrigada pela listinha de booktubers e por compartilhar tua pesquisa nisso.