Linguagem Guilhotina #6(66) - A edição trevosa & macabra-Parte II
Na qual eu compartilho parte do processo de escrita do meu único conto de horror publicado até agora em 2023
O demônio do processo criativo
Hoje é dia de abrir a caixa de Pandora do processo de criação. Tenho uma relação de amor-ódio com a escrita que se debruça a respeito de si mesma. Isso é válido tanto para a ficção, quanto para textos como o desta newsletter. Lembram da expressão “armadilha de turista”? Aquele tipo de atividade que supostamente é uma experiência que te traria uma positiva experiência a respeito de um lugar... Mas que se revela, na verdade, algo bem diferente disso. Eu considero a metalinguagem a “armadilha de turista” dos acadêmicos e críticos literários. Não significa que um texto está condenado a naufragar, porque lançou mão da metalinguagem. No entanto, a linguagem que se olha no espelho corre com frequência o risco de só falar para si mesma, envaidecida com sua suposta importância e natureza “não comercial”. O narcisismo está logo ali, dobrando a esquina. A quem interessam de verdade os mecanismos da criação literária? Escrever sobre si, sobre as próprias palavras, não seria o supra-sumo do umbiguismo?
Por outro lado, nada mais clichê do que se colocar numa posição isenta de clichês - “farei um texto sobre meu processo criativo, mas primeiro vou garantar que sou diferentão de todos os textos do gênero que rolam por aí”. Considero risível depoimentos de escritores/escritoras que se colocam “para além da linguagem padrão”, ou “fora do mercado”, ou “fora do sistema”, sem que, dentro destas falas, haja uma reflexão sobre duas verdades importantes: a) nossa linguagem literária nasce de um sistema mais amplo de consensos pré-definidos; b) estamos sempre inseridos em algum sistema social e econômico - estamos sempre comprando e vendendo.
A defesa de textos sobre processo criativo
Tenebroso: acabo de fazer uma metalinguagem sobre a metalinguagem!
Vale a pena desmontar os argumentos anteriores. Há textos fecundos sobre criação literária, enquanto outros são menos proveitosos. E a avaliação a respeito da qualidade de uma reflexão sobre processo criativo depende também do olhar de cada leitor. Assim, na parte “amor” da minha relação com estes textos, afirmo a vocês que me dá muito prazer e empolgação ler sobre como meus colegas e minhas colegas não só escrevem, como conduzem suas carreiras. Há muito a aprender, sempre. E, em relação aos sistemas nos quais estamos inseridos, isso não quer dizer acomodação e determinismo. É preciso tensionar os “sistemas”, sempre, mas sem ilusões de uma absoluta originalidade ou marginalidade.
Quero falar, a partir de agora, com vocês de como escrevi o conto “Meia-noite na Guerra do Paraguai”, que foi publicado no começo deste ano na antologia Mundos Paralelos - Horror, organizada por Oscar Nestarez e publicada pela Editora Globo.
Guerra do Paraguai
Há anos sou fascinado por este episódio da nossa história, que está conectado ao fim do reinado de Dom Pedro II, à definitiva colocação das Formas Armadas no palco político do nosso país, à Abolição da Escravatura, a crises econômicas, entre outros acontecimentos. Ao longo dos anos, na verdade, eu tenho tentado escrever sobre guerras no geral e fracassado de forma retumbante. O melhor que cheguei foi num conto chamado “Teresa”, publicado em uma edição especial da Granta em 2012, republicado depois no meu livro de contos Na outra margem, o Leviatã, em 2018.
“Meia-noite na guerra do Paraguai” foi escrito e enviado para meu editor da Globo no último trimestre de 2021, portanto ainda antes da publicação de Gótico Nordestino, lançado no ano seguinte. Com algumas alterações, poderia ter sido, inclusive, o décimo conto do meu livro de 2022. Não faço ideia de como veio a exata ideia para o conto, mas eu queria escrever sobre guerra. Quando Oscar Nestarez me convidou para a antologia, matutei alguns temas e ideias, porém logo se consolidou na minha cabeça que eu deveria escrever sobre a Guerra do Paraguai. Por quê? Além da minha fascinação pelo tema, falar deste episódio me faria abordar militarismo, nacionalismo e doença. Desta maneira, meu conto é um comentário sobre o Brasil-Bolsonaro e a pandemia, mas com a vantagem da distância histórica.
Por isso, meus três protagonistas - um judeu cuja identidade cultural se perdeu, um escravo alforriado e um bacharel em Direito da elite paraibana - precisavam ser militares. Não da alta patente, mas soldados rasos. O protagonista do conto é o bacharel de Direito. Quando entendi a jornada dele, entendi o conto: eu falaria sobre as ilusões perdidas deste personagem, que chega no campo de batalha com idealizações sobre a guerra e o Brasil. Para quem leu o conto, sabe que decepções surgirão…
A jornada
E aqui está um elemento estruturante dos meus contos dos últimos anos: eu sigo uma jornada clara das minhas personagens protagonistas. Desta maneira, eu situo minha protagonista em um ponto A. Após uma série de desdobramentos, esta personagem passa por mudanças e chega a um ponto B, que é quando o conto se dá por encerrado. É uma forma bem clássica de contar uma história - é, aliás, contar uma história, efetivamente. Aqui identifico a principal diferença entre meus dois livros: o de 2018 é mais experimental, porque é feito de fragmentos e de impressões subjetivas das minhas personagens. Um livro de colagens de subjetividades, na maioria dos textos, sustentado no jorro de uma linguagem bastante epifânica. Já na minha atual “fase”, eu decidi abraçar jornadas de personagens, narratividade e concretude. Em Gótico Nordestino, dos 9 contos, 8 seguem esta estrutura da jornada.
É importante fazer pesquisa?
“Meia-noite na guerra do Paraguai” é um conto histórico ambientado no século XIX. Fiz muita pesquisa para escrevê-lo? Não. Eu não sou afeito a fazer muita pesquisa antes de escrever. Por isso, até anos recentes, a maior parte dos meus contos se ambientava no tempo presente. A explicação para isto é o fato de que eu sou, além de escritor, acadêmico, e faço pesquisa para pagar a maior parte dos boletos. Desta maneira, quando vou criar, a atividade de pesquisa me dá um cansaço desde o início.
No entanto, com Gótico Nordestino e com “Meia-noite na guerra do Paraguai”, eu decidi que queria falar não apenas do contemporâneo. Na verdade, todas as minhas ideias recentes são de contos históricos. Dois deles, que ainda vão sair ao longo de 2023, se passam outra vez no XIX. Por quê? A dimensão de comentário político no que escrevo ficou muito aguda nos anos recentes. No entanto, eu preciso que haja mediações para a política, porque a literatura, a imaginação, o sensível, precisam ser protagonistas, sempre. O passado e o sobrenatural têm sido minhas principais ferramentas de mediação, assim como a busca por uma poesia discreta em minha prosa.
Mas, então, tu fez pesquisa, ou não?
Fiz sim.
Eu pesquiso até o ponto em que sinto que, com as informações em mãos, eu tenha conseguido criar uma mínima verossimilhança histórica, ou seja, tenha conseguido iludir o meu leitor o suficiente de que ele realmente está vivendo um passado. Assim, atualmente a minha relação com o passado é clássica também, no sentido de que não quebro muito a “quarta parede” da ilusão narrativa.
Eu usei como base em especial alguns artigos publicados em revistas acadêmicas sobre a Guerra do Paraguai. Além disso, para a experiência histórica de um soldado, bem como para a referência visual do episódio histórico em si, usei histórias em quadrinhos. Sim, os quadrinhos estão cada vez mais presentes no meu processo criativo e foi a partir de Gótico Nordestino que abracei isto.
Quais HQs utilizei? Estas aqui:
E como foi a escrita em si?
Não muito diferente do meu processo normal. Eu tinha um tema e imagens na cabeça. Em seguida, achei personagens e meu protagonista. O “salto” é dado quando eu acho, como escrevi antes, a jornada do protagonista. E, em seguida, se o conto é sobrenatural, eu penso em um elemento monstruoso que está conectado diretamente ao drama da personagem protagonista e da sua jornada.
Esta etapa acontece em minha cabeça, em anotações em caderninhos ou num arquivo de Word que mantenho. É o momento da pura pulsão criativa. Quando eu entendi a história, quando eu descubro que sou capaz de contá-la, daí faço uma escaleta. Sempre em um caderno, sempre em forma de tópicos. Em cada tópico, anoto a sequência de cenas. Em geral, eu sei como minhas histórias terminam. Tudo pronto? Hora de escrever. Procuro seguir meu roteiro prévio, mas sempre com a mente aberta para mudar de planos. Eu planejo a história como um engenheiro, mas a escrevo imitando as mãos de um músico de jazz.
É diferente escrever para jovens?
Esta foi a questão peculiar de “Meia-noite na Guerra do Paraguai”.
Havia um público-alvo definido, os leitores jovens, porque a antologia tem o objetivo de estar nas escolas e de ser trabalhada em sala de aula. Só que eu nunca tinha escrito para um público específico antes, quanto mais para jovens leitores. Mas eu tinha a intuição de que precisava levar a sério este público, no sentido de que não deveria infantilizá-lo. Foi também o conselho que uma das minhas agentes, Camila Werner, me deu. Uma das versões do meu conto foi lida e comentada por ela, o que me deu muita segurança na hora de mandar para a editora. Ficam meus agradecimentos a Camila.
As únicas diferenças entre “Meia-noite na guerra do Paraguai” e minha escrita para “adultos” foram as seguintes: a) Uma linguagem mais direta, sem digressões e sem vocabulário rebuscado; b) Uma intensidade menor na violência. Também decidi não usar palavrões; c) Uma estrutura linear, privilegiando os acontecimentos; d) Personagens com traços ainda mais definidos do que já faço. São personagens bem visuais, de certa maneira, com traçados marcantes e reconhecíveis de imediato - aí, os quadrinhos, outra vez.
Para além disso, tudo que eu queria dizer no conto, as sensações que eu quis inspirar, os debates políticos, as imagens criadas, a construção das personagens, são as mesmas da minha ficção adulta. Inclusive a minha tendência de encerrar com final aberto, quase depois do clímax do enredo - está lá, isto também. Escrevi como escreveria qualquer conto, porém só fazendo uma afinação em elementos pontuais da escrita.
Meia-noite na Guerra do Paraguai - Será que retomo a história?
Gostei demais de escrever este conto.
Curto o universo que criei para ele. Inclusive enxergo potencial para desdobrá-lo. No primeiro rascunho do conto, apareceu um problema que tem sido frequente: tenho precisado de cada vez mais espaço para contar histórias. Veio, então, a angústia do tamanho do conto: escrevi algo no início bem detalhado, com algumas digressões, e quando dei por mim, tinha extrapolado em muito o limite de caracteres que a editora tinha me dado. Precisei recomeçar quase do zero.
O trio de personagens principais, bem como os antagonistas do conto, têm estado na minha cabeça há mais de um ano. Muitos leitores e leitoras pedem que eu expanda as histórias de Gótico Nordestino em uma narrativa longa. Até recentemente, eu não tinha ideia de como, ou se queria, fazer isso, mas tive uma experiência recente - duas experiências na verdade - que me mostraram um caminho. Uma não posso falar; a outra, foi a de ter gravado o audiobook do livro (sobre esta experiência, planejo um post aqui nas próximas semanas).
Enfim, “Meia-noite na Guerra do Paraguai'“ ainda vai voltar. Adoraria expandir esta história.
Mais planos para escrever livros para jovens leitores?
Planos, não. Vontade, sim.
Me imagino escrevendo para leitores jovens de novo. Adoraria fazer algo com ficção científica ou fantasia. Em especial, fantasia, porque é um gênero que não me vejo escrevendo para o público mais adulto. Gosto de pensar que existem dimensões da minha imaginação que podem ser melhor ativadas na literatura fantástica infanto-juvenil ou YA.
Quem sabe o que o futuro reserva.
A edição de hoje ficou longa, por isso decidi focar com exclusividade no tema do processo criativo. Mais curiosidades sobre tudo isso? Me contem e me mandem mensagem, seja aqui nos comentários, ou no chat e no notes do Substack.
Vamos continuar a conversa =)
Até a próxima!
C.
Muito legal! E eu faço TANTA! pesquisa pra escrever... Abraços pra você, gostei da meta da meta :P
Muito legal saber do teu processo criativo. Eu não me vejo escrevendo pra um público jovem ainda, acho, talvez pela minha formação, que deve ser muito mais difícil. Quanto à pesquisa é algo que adoro, mais ainda do que escrever, acredita? Posso passar horas só pesquisando pra um tema que quero escrever. Ansiosa por uma narrativa longa sua, espero que role em breve.