Linguagem Guilhotina #5 - A edição trevosa & macabra-Parte I
Uma entrevista com o escritor de horror Oscar Nestarez, sugestões de leituras e do que assistir e alguns links malévolos!
Meia-noite na Guerra do Paraguai - La propaganda
Não publicarei nenhum livro de ficção em 2023 (já um de crítica literária, quem sabe?), mas ao longo deste ano vão ser publicados alguns contos inéditos em quatro antologias diferentes. O primeiro deles saiu no começo do ano na antologia Mundos Paralelos - Horror, publicada pela Editora Globo. Agradeço muito a Oscar Nestarez pelo convite (tem uma entrevista com ele logo abaixo) e também ao meu editor na Globo, Lucas De Sena. O conto, assim como toda a antologia, é voltado pra o público jovem. Gostei demais da experiência de pela primeira vez escrever especificamente para este público. Espero no futuro escrever algo novamente para os leitores e leitoras jovens, quem sabe no campo da Fantasia ou da Ficção Científica? O conto se chama “Meia-noite na Guerra do Paraguai” e retoma este conhecido episódio histórico na clave do horror. Na próxima edição desta newsletter, falarei dos bastidores dele.
Entrevista com Oscar Nestarez
“Considero a violência extrema inescapável ao horror. Sobretudo em um país/mundo como o atual, desigual, arrebentado pelo radicalismo político e com tantas contas a acertar com seu passado.”
Oscar Nestarez é um dos principais escritores e pesquisadores de horror da atualidade. Doutor em Letras pela USP, vencedor dos prêmios Odisseia Fantástica e Aberst, o escritor paulista tem trilhado uma sólida carreira, nos últimos anos, na crítica e na criação do insólito brasileiro. Ano passado, lançou uma ótima antologia em parceria com o professor Júlio França: Tênebra - Narrativas brasileiras de horror, na qual mapeou os principais contos de horror do século XIX em nossa literatura (e são muitos!). Oscar é também o organizador da antologia Mundos paralelos - Horror, que publicou meu conto “Meia-noite na Guerra do Paraguai”. Nestarez falou comigo não só sobre algumas características das narrativas de horror, como também do lugar (ainda) incômodo do horror na tradição crítica sobre literatura brasileira. Por fim, deu para gente algumas dicas de filmes, séries e leituras.
1) Oscar, há ainda na crítica e no ensino de literatura brasileira uma relação tensa entre o campo do insólito e a nossa tradição literária. Em especial, penso, no caso do horror. Queria que você comentasse isso um pouco, além de posicionar a tua própria obra como autor brasileiro de horror na nossa literatura.
Acho que você foi gentil ao falar de “tensão”. Porque o termo indica um conflito entre dois lados, sendo que, nesse caso, minha impressão é de que um dos lados, o da tradição literária, sempre foi indiferente ao insólito e ao horror produzidos no país (com as exceções de sempre, Murilo Rubião, J.J. Veiga e outros poucos sortudos).
Isso vem mudando aos poucos, é verdade. Mas acho que ainda é válido dizer que o lado hegemônico sempre se fez de desentendido, fosse porque não enxergasse valor estético nessas expressões (mesmo não as conhecendo a fundo), fosse porque considerasse que essas narrativas não coubessem no programa estabelecido para a nossa literatura. A tensão, portanto, vem apenas do “nosso” lado, ou seja, de quem escreve, pesquisa e sobretudo lê o insólito e o horror criados no país. E a tensão tem origem no que consideramos uma injustiça, porque a leitura atenta de diversas dessas obras não apenas revela o potencial literário delas, mas também oferece novas respostas às perguntas que sempre fizemos sobre nós mesmos como sociedade, como cultura, como país. São perguntas que os guardiões da tradição (em especial a crítica e a academia, as grandes editoras a reboque) sempre endereçaram a um contingente limitado de projetos literários. Mas, hoje, por conta de tais limitações, esses projetos me parecem a caminho do esgotamento. A personagem em crise existencial, em processo de desconstrução, em confronto com a sociedade que a cerca e problematizando sua própria condição, etc etc.
Dentro desse contexto, vejo meu trabalho como uma reação natural e, portanto, como uma sondagem por novos caminhos. Não sei se consigo achá-los, mas buscá-los é o que me impulsiona. A verdade é que também falo de crises – acho que a literatura nasce da desestabilização –, mas, nesse caso, cavo os buracos rumo ao subterrâneo, às profundezas, mesmo, sejam do sujeito ou do mundo, e nesse processo me sinto livre para inundá-los com a imaginação. Me interessa o que está por trás e principalmente por baixo, escondido, solapado. E sou apaixonado pela forma como a imaginação pode amplificar, distorcer e metaforizar o que encontramos nesses recessos.
2) Volta e meia eu pego obras de horror nacional e eu sinto um tanto de artificialidade no que leio. É como se houvesse uma transplantação imediata de uma escrita de língua inglesa, em especial estadunidense, para a nossa literatura. Sinto isso também no campo das narrativas de Fantasia, aliás. Por outro lado, hesito muito em buscar uma cor local para estas obras, porque creio que este é um dos nossos grandes problemas críticos. Como você enxerga a questão?
Em muitas leituras que faço de obras nacionais, sinto o mesmo que você. Fico com a impressão de que a pessoa não vai além de emular algo que a impactou. Acho que falta, nesses casos, absorver o impacto e estudá-lo, para somente depois considerar reproduzi-lo em uma história própria. No lugar dessa absorção, identifico só uma reação apressada, uma urgência em reagir e “devolver a porrada”. Suspeito que isso tenha a ver com a ansiedade de se publicar, de se apresentar algo ao mercado. O resultado sai pela culatra, porque as prateleiras se enchem de obras frágeis, porque precoces. O golpe pretendido vira um peteleco, quando não cócegas.
Horror, penso eu – poeano que sou –, é construção, é concepção de um mecanismo complexo, cujas peças devem estar exatamente no lugar. Existe sim espaço para a intuição, mas o corpo da obra advém dessa arquitetura e desse raciocínio. Então, é natural que, se de repente surge por aí uma potente máquina de arrepiar, tenhamos cópias dela – algumas competentes, é verdade, mas a maioria de má qualidade. Isso em qualquer lugar, não só no Brasil. E é natural, dado o alcance e a força da produção estadunidense e de alguns países europeus, que esses sejam os modelos mais copiados.
Quanto à cor local, também compartilho da sua angústia. Acho que ela deve aparecer com naturalidade, não como finalidade. No meu caso, acredito encontrar a resposta para o impasse naqueles túneis que cavo rumo à subjetividade. É o que me interessa. Aprendi a confiar nos meus sentidos, nas minhas percepções como morador deste mundo estranho e assustador – mundo, veja, não só país. Claro, a minha existência como brasileiro é um estruturante das minhas histórias. Está na ambiência, nos espaços, na composição das personagens e nas relações entre elas, e em muitos elementos que fogem à minha percepção. O simples fato de eu abrir o laptop para escrever estando em SP já determina muita coisa. Mas a busca pelo subterrâneo e pelo que está oculto conduz a lugares outros, indefinidos, preferencialmente desconhecidos. Nesse movimento talvez haja um caminho possível – afastado da emulação e nem tão matizado pela cor local.
3) Uma dinâmica muito interessante do seu ótimo livro de contos O breu povoado é que, com frequência, os contos se encerram com uma explosão de violência, geralmente com sangue e vísceras exibidos de maneira explícita. Qual a importância da violência extrema para o horror?
É curioso, porque prefiro a violência imaginada à mostrada. Talvez pelo controle proporcionado pela imaginação – escrevendo ou até mesmo lendo cenas de violência, controlo uma série de aspectos que fogem à minha alçada quando assisto a um filme, vejo algum vídeo na internet ou leio quadrinhos ultraviolentos. É verdade que, no caso de meus contos, haja um esforço de construção imagética que prioriza a verossimilhança; ainda assim, sou senhor deste mundo, sou eu que determino quantos litros de sangue serão derramados, quais membros serão decepados, o quanto de vísceras vai se espalhar pelo chão. Não estou sujeito às escolhas de outra pessoa. Acho que existe, nesse processo, um tanto de vaidade e de egoísmo. Admito e aceito isso. Mas também acho que se trata de testarmos os nossos limites, dentro de um ambiente seguro para nós. Se você me permite ser cabotino, vou parafrasear o narrador de um de meus contos, “Depois da carne”: “Quão longe é longe demais?” Eis aí uma pergunta que adoro fazer aos meus textos. E a resposta, com frequência, vem pela violência, como veio nesse conto.
Feito esse comentário, considero a violência extrema inescapável ao horror. Sobretudo em um país/mundo como o atual, desigual, arrebentado pelo radicalismo político e com tantas contas a acertar com seu passado. Horror (também) é ameaça, e a ameaça da violência é uma constante na vida de todos nós. É evidente que histórias que se pretendam assustadoras incorporem isso.
Por outro lado, não considero uma boa alternativa “disputarmos” com a violência da realidade. Ela é insuperável, e não aceitar isso só vai render obras apelativas, gratuitas. A violência extrema, para ser efetiva dentro da ficção de horror, precisa respeitar seu lugar num minucioso processo de construção e de ambientação. É uma ferramenta, um elemento discursivo, muito mais do que uma finalidade em si. O que diz a violência extrema dos rituais de Nossa parte de noite, romance da escritora argentina Mariana Enríquez? Muito mais do que apenas corpos humanos devorados, sem dúvida.
4) Algo sobre o qual conversamos e até já escrevemos juntos é sobre o quanto o horror é uma estética que se infiltra nos lugares mais surpreendentes. Muita gente que diz não gostar de horror às vezes consume narrativas que, sem que percebam, são influênciadas por ele. Até uma série de Fantasia que foi um fenômeno pop, como Game of Thrones, possui DNA no horror. Outro exemplo é a minissérie Chernobyl, com elementos de suspense, horror corporal e uma estética de desolação fria que me parece influênciada pelo gênero. Não surpreende, aliás, que o produtor desta série tenha criado The Last of US, série de Ficção Científica/horror. Como você enxerga a potência do horror como uma estética "subterrânea" até em narrativas realistas?
É interessante perceber que aqui estamos falando de horror como modo, e não mais como gênero. Uma cisão semelhante à que ocorreu com o fantástico, de que falam teóricos como Remo Ceserani e Irène Bessière. E isso, a meu ver, só comprova a força expressiva do horror. É como você falou: potência, e eu acrescentaria versatilidade. Como ferramenta discursiva, o horror se mostra “pau pra muitas obras”. É capaz de se misturar facilmente às outras possibilidades das narrativas fantásticas, e mesmo sobreviver fora desse contexto — no cinema, na literatura ou em qualquer outra linguagem.
E o mais surpreendente, penso eu, é encontrarmos ecos do horror onde menos esperávamos. Ou seja, em narrativas que sequer são marcadas pela presença do fantástico, do confronto entre realidade e sobrenaturalidade. É quase como um contrabando do horror para dentro de obras criadas com outros propósitos. Como você bem apontou, é o caso da série Chernobyl, da HBO. Embora seja uma obra de ficção, a narrativa tenta manter a fidelidade aos fatos históricos que levaram a um dos piores desastres nucleares da história, e a linguagem do horror, aqui modulada, ajuda a narrar essa dimensão. Outro exemplo, embora numa dinâmica diferente, é Wandinha, que deriva do universo do horror, mas se encaminha a outras paragens. O Tim Burton é mestre nessa dialética.
5) Muitos dos leitores da newsletter não são necessariamente aficcionados por horror. O que você acha de indicar 5 obras contemporâneas na literatura (ou quadrinhos) e 5 no audiovisual (tv e cinema) para quem quiser se aventurar?
Acho ótimo e necessário! Citarei só obras que saíram aqui no Brasil. Lá vão cinco livros e um quadrinho (em ordem cronológica):
● A casa no fim de tudo, romance de William Hope Hodgson
● A assombração na Casa da Colina, romance de Shirley Jackson
● Repique macabro e outras histórias estranhas, coletânea de Robert Aickman
● Nossa parte de noite, romance da argentina Mariana Enriquez
● Do inferno, quadrinho de Alan Moore e Eddie Campbell.
E cinco narrativas audiovisuais (entre as que vi recentemente):
● Speak no evil, filme de Christian Tafdrup
● Clímax, filme de Gaspar Noé
● Saint Maud, filme de Rose Glass
● Possessor, filme de Brandon Cronenberg
● Servant, série criada por Tony Basgallop (Apple TV+)
À Meia-noite Levarei Teus Links!
Ainda falando de horror, deixo como sugestão a newsletter de outro ótimo autor do gênero insólito, Eric Novello. Já o escritor e pesquisador gaúcho André Araújo publicou três ótimos textos sobre horror na sua newsletter;
Este próprio que vos tecla comentou bastante sobre as relações entre horror e ficção científica aqui neste podcast:
É curso de escrita criativa que vocês querem? Estão abertas as incrições, até o dia 12/04, do Ateliê de Criação Literária, um super curso de escrita da Biblioteca de São Paulo. Entre os professores, estarei eu. Darei o módulo “Ficção sobrenatural”. Será minha primeira experiência como prof. de escrita criativa!
Entre múltiplos terrores e em meio aos amplos horizontes que a literatura brasileira pode nos oferecer, finalizo a edição desta newsletter. Na próxima edição, a parte II da temática do horror, compartilharei com vocês os bastidores do conto que publiquei na antologia da editora Globo. Em até quinze dias nos revemos por aqui!
C.
Querido! Muito boa essa edição, e obrigado demais pela recomendação da Espeluznante, fiquei todo bobo hehe. Sigo acompanhando aqui, o material está muito bom. Grande abraço, querido!
muito bom ler vc dois 💛