Linguagem Guilhotina #4 - Estilhaços & Sonhos
Compartilho hoje com vocês imagens cotidianas, além de sugestões de leitura.
O sonho
Tive um sonho ontem.
Uma amiga me encara, segura nas minhas mãos e me diz: “eu só consigo ser amada quando é primavera e verão”. Daí, ambos olhamos na direção de uma árvore sem folhas, uma das árvores sombrias de Princeton e da paisagem de New Jersey em geral. Sentimos uma comunhão com ela. A árvore quer ser habitada por nós, eu senti.
Acordo.
A manhã está cinzenta.
Ao acordar, a frase dita por ela me passou uma sensação de profunda iluminação do estado de todas as coisas. A frase parece ter aberto a Caixa do Segredo, revelando, por conseguinte, alguma verdade sobre a minha vida, ou a dela.
Horas depois, no entanto, a tal “verdade” me escapa. A imagem continua forte na minha mente, porém não sei mais o que ela gostaria de me dizer. A imagem e as palavras ditas estão límpidas e visíveis; não consigo atravessar o sentido delas. O que, afinal, meu sonho gostaria de ter me dito? E por que a chave da sua compreensão foi muito mais sentida por mim, porém não compreendida?
O dançarino
Dias atrás, em um café, observei o comportamento de um senhor sentado em uma mesa na minha diagonal. Ele falava sozinho e fazia intrincados gestos com as mãos. Os gestos podiam significar exercícios físicos, preces ou passes de mágica. De vez em quando, o homem se levantava e ficava na ponta dos pés. Em seguida, dava uns pulinhos no meio do café. Quem é ele? Que tipo de universo ele parcialmente compartilha com os clientes do Small World Coffe? Ele me lembra um personagem de um poema de Camões; ele me lembra um personagem de um romance de Juan José Saer, As nuvens. Gosto muito de tipos excêntricos, obssessivos, ou que vivem parte da vida dentro das suas mentes e das suas imaginações. Me reconheço, em parte, nesses personagens. Eles me lembram que a porta de saída, ou de entrada, do delírio - o delírio miúdo, do dia-a-dia, não os pesadelos acordados dos graus profundos da loucura - é mais ilusória do que queremos acreditar .
Um deus
(Este fragmento foi escrito por mim em 2011 em uma encarnação anterior deste blog. Achei que faria sentido republicar. Alterei um tanto da pontuação original, da qual não concordo hoje em dia; cortei boa parte das linhas e sobrou isto, que considero legível)
Sexta-feira, eu subia a Angélica em direção à Paulista. Assim que cheguei ao cruzamento entre a Consolação e a Paulista, uma picape entrou na Consolação, carregando um imenso, reluzente, touro dourado cenográfico – um deus antigo fabricado com papel, gesso, espuma e cola (2011).
Nathalie Sarraute, Virginia Woolf e Katherine Mansfield
Desde o ano passado, meu trabalho como autor ficou mais conhecido por histórias sombrias, violentas e narrativas.
No entanto, eu também gosto demais de escrever fragmentos como os que compartilhei com vocês. Há sempre uma base de epifania neles - a escrita modernista é a minha maior influência, desde sempre -, a partir da qual procuro apontar uma sensação de estranheza cotidiana. Este intimismo, ainda muito forte no meu livro de contos de 2018, Na outra margem, o Leviatã, não me abandonou por completo. Além disso, num dia distante, quero publicar um livro miúdo, de formato de bolso, quem sabe, com alguns destes fragmentos.
Um dos livros que mais me influencia em tempos recentes é Tropismos, da escritora francesa, de origem judaica e russa, Nathalie Sarraute. Em cenas curtas, muito densas, Sarraute explora, com uma profundidade e beleza raras, a vida interior em conflito com o cotidiano. A editora independente Luna Parque lançou, há alguns anos, uma tradução no Brasil. Outros textos cujas leituras me impactaram, que podem ser associados a Tropismos (embora anteriores cronologicamente) são as narrativas curtas de Virginia Woolf. A arte da brevidade, publicado pela Autêntica, está sempre em minha mente, e é uma ótima forma de conhecê-los. Por fim, outra leitura, se você gosta de Sarraute e Woolf, é Katherine Masnfield, outra grande voz do modernismo em língua inglesa cuja leitura tem marcado a minha escrita. Há muitas antologias dela em português, assim como é fácil achar material dela na sua língua original.
E se há um filme recente que traduziu tudo isso em uma das mais instigantes linguagens visuais que vi no cinema em anos recentes, é sem dúvidas o maravilhoso Aftersun, dirigido por Charlotte Wells. Não à toa, eu adorei esse e ele talvez tenha sido o meu favorito do ano passado.
Sugestão 1: aos poucos, vou indicando outras newsletters para vocês. Uma das que tenho lido com alegria é a da minha amiga e escritora Ana Rüsche, cuja ótima novela A telepatia são os outros vai ganhar edição em italiano. Rüsche transita sobre muitos temas interessantes, seja criação literária, ficção científica, ou antropoceno, por exemplo. Vale muito vocês conferirem.
Sugestão 2: É um alento ler a coluna de Juliana de Albuquerque na Folha de São Paulo. A desta semana está muito legal, com uma leitura da novela Nêmesis, de Philip Roth, outro autor do qual gosto bastante.
Imagens íntimas, sonho, memória, estranheza. Os ingredientes da edição de hoje foram esses. Espero que tenham gostado.
E me contem: quais narrativas intimistas, experimentais, líricas, no audiovisual e na literatura, vocês gostam?
Na próxima edição, o tema será outro: o terror!
C.
Nossa, detesto quando as epifanias que chegam através de sonhos nos escapam. E, sim, a gente mais sente do que compreende num nível consciente, sei lá, e sinto que muita coisa se perde nesse caminho...
Sou fã de Mansfield.
Grata por suas epifanias.