Linguagem Guilhotina #2 (V.2) - Que bom que temos o carnaval!
No dia de hoje, converso com vocês sobre por que a Literatura gosta tanto do carnaval.
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
-A La Ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro!
Chegou o carnaval.
Embora os festejos oficiais aconteçam alguns dias depois da publicação deste texto, a verdade é que em várias cidades brasileiras, como é o caso de Recife, Salvador, Rio de Janeiro ou São Paulo, os blocos, as danças, as fantasias e as músicas têm há dias tomado as ruas. Este final de semana, por exemplo, na região do centro de São Paulo onde moro, fiquei literalmente ilhado por blocos de carnaval que, sinuosos, malemolentes, brincaram ao redor da minha casa.
O carnaval é um dos temas da nossa cultura que mais me fascinam.
Não estou sozinho: muitos poemas, crônicas, romances, peças de teatro e contos foram escritos, tanto em nossa literatura, quanto na de outros países, sobre a festa. Isso sem falar nos inúmeros ensaios de interpretação do país que escolhem o carnaval como objeto de estudo. Ficando só com a literatura brasileira, percebemos que o carnaval é tema recorrente, em especial nas formas mais curtas da crônica e da poesia. Também encontramos romances sobre carnaval, como é o caso de O país do carnaval, de Jorge Amado, ou de A lua triste descamba, de Nei Lopes. Na literatura infantil e infanto-juvenil há um rico catálogo carnavalesco. E se você gosta de ler livros de safadeza autopublicados na Amazon (ora, por que não?), vai se divertir com títulos como O meu carnaval com o badboy, O meu carnaval com o Magnata, Carnaval com sabor de tentação, Esqueça-me depois do carnaval, No carnaval com meu padrasto: um conto erótico tabu (sic).
Os lugares do carnaval
Por eu ter sido criado em um contexto protestante e bastante religioso, durante um longo tempo eu tive uma visão pejorativa do carnaval. À influência da religião se somava um tanto de esnobismo intelectual, uma militância a favor puramente das “coisas do espírito”.
Pois bem, hoje em dia penso diferente. E entendo que o carnaval contém uma cultura rica e complexa, cujas facetas são inúmeras, pois as suas manifestações têm a cara das diferentes regiões brasileiras onde a festa é realizada. Entendo perfeitamente se o carnaval te incomoda, porque ele tem o potencial de transtornar a rotina e o conforto da sua rua, ou do seu bairro. Também compreendo que o carnaval pode afrontar os seus valores como uma pessoa conservadora. No entanto, defendo que o carnaval é tema sério, que deve ser respeitado e preservado. Além disso, ele pode ser um tema muito bom para a literatura.
Fiquei me peguntando qual é a obra mais carnavalesca da literatura brasileira.
Logo, me veio à mente um clássico do modernismo brasileiro. Embora esse livro não seja sobre o carnaval, ele é O Carnaval.
Me refiro a Macunaíma, de Mário de Andrade. Tudo que penso como a alma do carnaval é, no fim das contas, a alma deste maravilhoso romance, cuja complexidade de leitura às vezes se torna o pesadelo de tantos alunos e alunas que são obrigados a lê-lo. Só o país do carnaval produziria um Macunaíma, não acham? É esculhambação literária da melhor qualidade. Nessa obra de Mário, tudo está de cabeça para baixo. E tudo é impuro - não há nada mais carnavalesco do que isso.
Por que escritores e escritoras escrevem sobre o carnaval? Por que, mesmo se não caímos na folia, a festa pode nos fascinar? Eu gosto muito do fato de que o carnaval é um lugar de intensas contradições. No carnaval convivem a ternura e o desrespeito; o sexo e a violência. O carnaval é o luxo da purpurina, do dourado-crepom, das cores coloridas no cabelo, dos sorrisos; é, também, a revelação dos excrementos humanos - urina e fezes pelas ruas, esperma nas camisinhas largadas no chão e o sangue das brigas.
Nós podemos nos amar no carnaval. Conheci casais que se apaixonaram no carnaval e viveram uma relação rica e duradoura, como conheci histórias de paixões fulminantes que, de tão abrasadas, deixam somente cinzas na quarta-feira. Ao mesmo tempo, todas as mulheres que conheço e que foram a algum carnaval, todas, sem exceção, têm ao menos uma história de violência de gênero para contar. Por violência, me refiro não somente à agressão física, mas ao assédio, por exemplo.
Carnaval é o lugar da celebração da imaginação. Como não se deixar seduzir pela possibilidade de nos tornamos outra coisa, além de nós mesmos? Essa é a promessa do carnaval. A promessa se realiza através da fantasia, palavra que vira carne no carnaval. “Hoje sou um pirata”; “Hoje sou o Batman”; “Hoje sou um pastel de Belém” - não há limites para as identidades que queremos assumir. Através da fantasia, como também da música, da dança e do desejo, muitas pessoas descobrem a alegria - e também os perigos - de deixar de ser um “Eu” para virar uma outra existência. Ao se fantasiar, todo mundo fica um pouco como nós, artistas, nós que usamos linguagens estéticas a fim de ganhar a vida imaginando vidas de ficção.
Por outro lado, é na fantasia que aspectos sombrios também se revelam no carnaval: o preconceito, o racismo, a agressividade, a frustração, o ressentimento. Ontem, quando eu voltava de carro para minha casa, por volta das 21h, os blocos do centro tinham se dispersado, embora muitas pessoas ainda estivessem pelas ruas. Me chamou atenção dois garotos vestindo camisas de uma torcida organizada. Estavam bêbados e xingavam e chutavam tudo que viam à frente deles. Eles vestiam uma couraça imaginária que é também uma fantasia, fantasia essa que lhes foi ensinada pela vida e pela sociedade.
O carnaval é, igualmente, uma conversa sobre as cidades, sobre o que significa ocupá-las, sobre como negociar, no espaço público, os diferentes interesses dos que as habitam. Dou um único exemplo da complexidade da questão. Na última década e meia, quando presenciamos o renascimento do carnaval de rua em inúmeras cidades brasileiras, o direito à cidade esteve no centro dos debates tanto dos que defendiam os blocos na rua, quanto dos que tentavam proibi-los e criminalizá-los. Vi isto ocorrer aqui em São Paulo, como também em Belo Horizonte e agora na minha própria cidade natal, Campina Grande.
Amemos, ou odiemos, todos os anos nossas rotinas são mudadas pela chegada do carnaval.
O carnaval é a nossa humanidade apresentada no seu volume mais alto. É nossa humanidade revelada tanto por nossos corpos, quanto por nossos fantasmas.
No começo deste ano, resenhei um ótimo lançamento de crítica literária: A parte maldita brasileira: literatura, excesso, erotismo (Tinta-da-China, 2023), de Eliane Robert Moraes. Nada melhor para uma leitura de carnaval do que este livro da professora Moraes, no qual descobrimos que nossa literatura não é tão comportada como defendem seus detratores. Na resenha que escrevi sobre o livro, eu afirmo que “Ao longo dos seus ensaios, a professora da USP aponta a complexidade do nosso decoro, revelando que ele foi muitas vezes usado por nossos melhores autores e autoras como uma maneira de burlar a própria interdição. Ou seja: na literatura, o proibido é sempre o mais gostosinho – e quem cala, consente, mas também provoca. Logo, se falei de caretice como nossa pedra fundamental, agora mostro o outro lado da moeda: nossa literatura é transgressora desde sua fundação, porque precisou construir estratégias para burlar, ou melhor seria dizer, seduzir?, o interdito do nosso decoro.” Se você gosta de crítica literária e quer conhecer mais sobre literatura brasileira, a leitura é muito indicada.
E que tal o carnaval? Vão ficar mais quietos em casa, lendo e vendo filmes, como é o meu caso este ano, ou vão para os blocos? Que leituras de carnaval vocês já fizeram, ou quais leituras vocês acreditam estão cheias de espírito carnavalesco? Quais são as outras contradições do carnaval? Continuemos a nossa conversa nos comentários. Volto por aqui no fim de fevereiro.
Abraços,
C.
(Este post foi escrito ao som de Rita Lee)
não tem uma semana do ano em que eu mais deseje estar no Brasil do que essa.
aproveite por mim!
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