Linguagem Guilhotina #2 - Proust & Apocalipses de plástico
Um trecho de À procura do tempo perdido, The last of us e distopias, plásticos dentro de bebês e o debate Foucault x Chomsky - sim, o gerente enlouqueceu nessa edição!
Mundos artificiais
Em determinado ponto de “Combray”, primeira parte de Para o lado de Swan, volume 1 de À procura do tempo perdido, de Marcel Proust (uso os títulos da tradução recém-lançada pela Cia das Letras), o narrador e sua família contemplam um tanque construído na propriedade rural pertencente a Swan. O narrador, então, conclui:
“mas, nas suas criações mais artificiais, é sobre a natureza que o homem trabalha; certos lugares fazem sempre reinar ao redor deles seu império particular, arvoram suas insígnias imemoriais no meio de um parque como o teriam feito longe de toda intervenção humana, numa solidão que por toda parte volta a cercá-los, surgida das necessidades de sua exposição e sobreposta à obra humana.”
Duas dezenas de páginas depois, a ideia contida neste trecho continuou a voltar à minha mente, a ponto de eu decidir pensar um pouco sobre ela com vocês (originalmente, meu assunto para esta edição do LG seria outro). Não só isso: escrevo este texto poucos dias depois de fazer a edição 1 da newsletter. A ideia não me deixou sossegado.
A imediata reação que tive ao ler este trecho foi: a perspectiva de Proust ainda vale hoje? Nas suas criações mais artificiais, é sobre a natureza que o homem trabalha, ainda? “A resposta é sim,”, poderia ser respondido, “porque tudo o que o homem constrói, de alguma maneira, se inspira, ou se baseia na natureza”. Só que não me parece este o ponto central de Proust. O autor francês fala da natureza como uma inescapável força de infiltração nas realidades sociais que construímos. Trabalhar “sobre a natureza” me soa como uma dimensão mais concreta e palpável da atividade humana. Construímos coisas, porém em alguma medida estamos à mercê da natureza. Ela nos ronda à espreita das brechas. Sem dúvidas, isso é verdade, porque todos os lugares que habitamos, construímos ou pelos quais circulamos exigem uma disciplina. As estruturas ao nosso redor tendem a se desmantelar; esta temporalidade reencena o retorno corrosivo da natureza. Vivemos em um cabo de guerra contra a desestruturação das nossas realizações humanas: o impasse nos nos dá um impulso para a reinvenção e para a frustração.
Já no tempo de Proust existiam cenografias artificiais, mundos de papel, cola e tinta, por exemplo. Hoje em dia, é possível passear por uma experiência, transformada em espaço, puramente virtual, como é o caso das exposições imersivas de pintores famosos que estão em moda nos museus e espaços expositivos. Dias atrás uma escritora amiga minha postou um story, no Instagram, no qual registrava a frequente visita de dois urubus na varanda da sua casa. Na hora eu perguntei a ela: isso é real mesmo?
O virtual é meu ponto de chegada: eu acredito que a percepção do que é humanidade, a definição possível do que somos, não é mais a mesma dos tempos em que Proust escrevia À procura do tempo perdido. Somos uma humanidade em profunda interface com uma dimensão da pura artificialidade, dentro da qual a entrada da natureza, de uma forma direta, está vedada. Chegamos a um ponto das nossas relações sociais, o virtual, no qual é difícil dizer, como Proust escreveu, “certos lugares fazem sempre reinar ao redor deles seu império particular”, sendo o “seu”, aqui, o império da natureza.
Humanidade inescapável
Não tenho dúvidas de que eu exagero. Sei que sua avaliação é a mesma: “calma, Cristhiano!”. Concordo com você: um furacão pode assolar uma parte de um país e basta isso para que eu perca eletricidade e acesso à internet! Neste fim de semana, assisti a um documentário da Netflix sobre desastres naturais (adoro esse tema) e um dos episódios foi sobre furacões. Havia no doc dois indivíduos que se tornaram “caçadores de furacões”. O documentário usou imagens que eles produziram durante a passagem do furacão Ida, em 2021, por New Orleans. Em certo momento - cada um deles está em um ponto diferente da cidade - o acesso à internet acaba. Não só isso, a bateria do celular de um dos autoproclamados “caçadores” para de funcionar enquanto a cidade é varrida por ventos furiosos de centenas de quilômetros por hora. Daí, o que penso? Todo meu argumento do item anterior cairia por terra, pois basta uma tempestade e o virtual pode se tornar silêncio.
No entanto, creio que meu ponto se mantém: a artificialidade é um traço mais marcante em 2023 do que em 1913 - meu debate é sobre gradações e intensificações. No caso do documentário que assisti, o episódio enfatiza como os furacões estão se tornando mais intensos e perigosos em um menor intervalo de tempo. E neste ponto, eu quero inverter a premissa de Proust e começar a pensar que a ação humana agora ronda a natureza e a subverte a um ponto de provável não retorno. O aquecimento global faz parte do debate sobre furacões, como foi também uma das cirscuntâncias que explicam a tragédia que acometou o litoral norte paulista no carnaval. Outro dado da infiltração inescápavel do humano na natureza é uma reportagem que me impressionou, a de que bebês já estão nascendo com plásticos em seus corpos, incorporados desde a gestação. Os processos naturais da vida já introjetam o lixo tóxico… somos humanos nascidos dentro de uma lógica em que o descarte industrial, o resto não destrutível, nos compõe. O natural é infiltrado pelo artificial.
Plástico e Last of Us
Outra notícia sobre plástico é a de que pesquisadores brasileiros descobriram, recentemente, que estão se formando, no litoral brasileiro, rochas e corais de plástico. Mais uma vez, o ponto inverso ao de Proust se apresenta a nós: o humano cercando a natureza e invertendo a dinâmica do seu domínio. Estamos entre dois terrores, acho. A luta contra o domínio da natureza, o que garante a nossa sobrevivência e a permanência das nossas criações; a luta contra nossa própria luta contra o domínio da natureza, cujos resídios e intervenções podem ser nossa destruição.
É nisso que se explica uma parte do apelo das distopias, cuja moda recente é a série de ficção científica da HBO The Last of us, baseada no jogo de mesmo nome. Joguei um tanto do game, mas não vi a série ainda, porém o apocalipse mostrado nas duas mídias - videogame e TV - é a válvula de escape do emparedamento sobre o qual falei com vocês no parágrafo anterior. As distopias mostram a melancolia das ruínas, nas quais a natureza retoma seu império no movimento descrito por Proust; quase todas, porém, culpam a ação humana pelo apocalipse. O nosso gosto por distopias, que trai uma melancolia romântica do arruinado e abandonado, é uma percepção instintiva, possivelmente universal, daquilo que Proust tão bem enxergou há mais de um século.
“Cristhiano, mas a sua perspectiva não é muito “ocidental” e “judaico-cristã”?”. Sem dúvidas. Outras epistemologias posicionam a relação do humano com a natureza em termos não-binários e não-belicosos. No entanto, penso que as culturas humanas, por mais diferentes da minha visão pessoal, se engajam em alguma medida no desafio da sobrevivência e da continuidade de si próprias. Suas respostas são certamente mais saudáveis do que a minha… Ando bem interessado em conhecê-las melhor.
Filosofices - Foucault x Chomsky
Falei uma palavra feia no texto anterior: “universal”.
Esses dias, os algoritmos do YouTube me mostraram um trecho de um debate entre Foucault e Chomsky, promovido nos anos 70 por uma TV holandesa. Ao debater sobre a ideia de justiça, Chomsky busca a hipótese de consensos amplos para uma vida social mais justa, bem como a possibilidade de que sistemas de justiça, por mais falhos que sejam, podem ser entendidos como fundamentados em um conjunto de valores básicos que respondem a necessidades de todos nós enquanto humanidade.
O filósofo francês, por outro lado, argumenta que o “universal” é sempre uma impostura de uma razão historicamente circunscrita e que os sistemas de organização social são tecnologias de opressão de classe. Estou reduzindo de forma miserável esse debate, mas quero deixar o vídeo com vocês. Vale muito a pena assistir. Há uma transcrição também, publicada em livro no Brasil, cujo exemplar adquiri hoje. Devo voltar a comentar com vocês sobre esse tema, porque Foucault sobre foi uma grande influência para mim, nisso que é uma formação não sistemática e fragmentada que tenho na filosofia e no pensamento social. No entanto, quando tenho voltado a ele, percebo com maior clareza, hoje em dia, dimensões do seu pensamento muito redutoras e, quem sabe, até paranóicas.
Curiosidade, aliás: já fui chamado por jovens marxistas da USP de “foucaultiano” - e não era em tom de elogio.
Literatura e natureza - três autorias
Quero indicar um autor e duas autoras cuja representação do mundo natural e dos espaços como um todo me fascinam. Não sei se todo mundo sabe, mas minha tese de doutorado foi sobre espaços na ficção. Disto vem também um diálogo com a filosofia e com a historiografia das ideias. Bom, um dos autores que estudei foi o argentino Juan José Saer. Em sua obra, escrever sobre a natureza é uma forma de investigar como a mente humana percebe e constrói a realidade. Relendo Proust, enxergo - a crítica aponta isso já - muita influência do autor francês em Saer. Acaba de sair no país a tradução de um dos grandes romances de Saer, O limoeiro real. Além deste, indico O enteado e Ninguém Nada Nunca. Em outra chave, o da Fantasia e Ficção científica, indico os contos e romances de Ursula Le Guin, umas das minhas autoras favoritas. Vale a pena verificar como a literatura cria naturezas fantásticas, impregnadas de magia, em O feiticeiro de Terramar. Por fim, nos últimos meses, tenho lido a poesia da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (sua foto ilustra esse post). Trouxe da minha viagem de Portugal o volume com a sua poesia completa. A luz e as sombras, assim como o movimento das águas, são temas recorrentes nos poemas dela que li. Os espaços em Andresen não resultam apenas da observação da natureza, mas nascem da releitura dos espaços naturais literários dentro da tradição poética portuguesa. É algo bem bonito de ser ler.
Dois paraibanos no podcast da 451
O leitor J Barros comentou na edição anterior se eu poderia entrevistar nosso conterrâneo Braulio Tavares. Por isso, compartilho com vocês o bate-papo que tivemos no podcast da 451 no ano passado. A entrevista foi feita pela jornalista Paula Carvalho - Paula nos chamou de “bruxos da literatura fantástica brasileira” e achei isso chique. Falamos de horror, literatura fantástica e outras trevosidades. Creio que compartilhar o episódio é perfeito para a presente edição, já que hoje estamos meio apocalípticos. Foi uma honra participar do podcast, não só porque gosto muito da 451, mas também porque sou fã do trabalho de Braulio desde a adolescência.
Entre plásticos, Proust e filosofia, encerramos a edição de hoje.
Obrigado por estarem aqui. Nos vemos no fim de março!
C.
Professor, muito feliz de encontrá-lo nesse espaço. A poesia de Sophia de Mello me encanta desde antes daquela pós que tive contigo no Mackenzie - ela é de uma clareza e honestidade líricas que me surpreendem por sua força.
No mais, coincidentemente, vi ontem o primeiro episódio de Last of Us na HBO e fiquei pensando sobre como nos atraímos mais e mais para a distopia. Sinal de um mundo que reconhecemos cada vez mais decadente?
Que bom que já veio uma segunda newsletter. Tô ouvindo o 451 agorinha