Linguagem Guilhotina #18 - Ruínas, política, metal, pedra
Quando toda viagem é sobre ruínas
Em minhas andanças de férias aqui pelos Estados Unidos, tive a oportunidade de visitar e ver uma série de monumentos/edificações importantes para a história política do país. Este é um traço peculiar da minha segunda vez morando por aqui.
Princeton, neste sentido, por ser uma cidade cujas origens remontam ao século XVII, já é marcada por um senso histórico bem forte e isto é perceptível de imediato. Agora há pouco, por exemplo, me deparei com uma postagem do tradicional cinema da cidade, o Princeton Garden Theatre, sobre Robert Oppenheimer, que viveu e trabalhou por aqui.
Ao sairmos de Washington D.C., minha família e eu paramos em Princeton antes de seguirmos para Nova Iorque. Passamos, já dentro da cidade, por uma ponte antiga, sob a qual corria um rio escuro, sinuoso, envolvido em meio a uma intensa vegetação. A paisagem, simultaneamente tão humana e tão natural, me remeteu a uma sensação de historicidade sem ponto de chegada. Com isso, quero dizer - suponho, na verdade, entender o que senti - que o lugar, vislumbrado, num relance, através da janela do carro em movimento, me remeteu ao peso daquilo que queremos traduzir ao dizermos “tal local tem História".
Mas qual história?
Este é o ponto crucial da questão, não é mesmo? E de uma batalha nem sempre palpável.
No museu do Sino da Liberdade, na Filadélfia (uma das cidades que visitamos) há um esforço palpável da curadoria da exposição para contar uma história nuançada, que procura reconfigurar, dentro do patriotismo estadunidense, as contradições violentas de sua formação histórica. O museu se localiza em um conjunto de monumentos suntuosos da Filadélfia, cidade onde foi assinada a declaração de independência do país. Suntuosos, também, são os edifícios, monumentos e museus que conheci em Washington D.C.
Voltemos ao sino, contudo. Ao longo da história deste objeto, a sua importância simbólica foi com frequência incorporada a todo tipo de discurso político: da direita à esquerda, de movimentos identitários a movimentos de política partidária. Todos os discursos e reinterpretações do Sino da Liberdade convergem para uma mesma ideia: “liberdade”. O problema, como é usual, é entender o que diabos esta palavra de fato significa e qual consenso construir a partir disto. O sino carrega em si uma involuntária ironia, pois, como revela a foto, ele está fraturado desde a primeira metade do século XIX. O museu nos informa que a fratura, motivo da aposentadoria do sino, pouco menos de 100 anos após o seu nascimento, é um alerta simbólico para “toda a humanidade” da fragilidade da liberdade, que precisa sempre ser garantida por constante luta e esforço.
Não sou contrário a este perspectiva e apenas acrescento que o mundo, e até mesmo o Brasil, podem chegar a esta conclusão sem necessariamente ouvir a sécular mudez do aposentado sino dos Estados Unidos. É por isso que eu interpreto o sino menos como um vigilante símbolo moral para o nosso planeta, e bem mais como a profunda ironia, inscrita em metal, a refletir a natureza cindida de um país que não consegue se reconciliar com os seus traumas históricos. Falo dos Estados Unidos, porém poderia falar do Brasil nos mesmos termos, embora provavelmente nossos sinos tenham sido todos derretidos para construir alguma coisa para alguém rico.
Em Washington D.C., visitei o Museu da Bíblia, que me encantou, apesar de algumas entrelinhas muito conservadoras nas suas narrativas curatoriais. O museu tem um belo acervo de Bíblias, algo que sempre me chama atenção em qualquer museu que visito, ainda mais se as Bíblias forem medievais. Como não poderia deixar de ser, o forte do acervo do Museu são as centenas de exemplares das mais diferentes Bíblias. Há outros objetos, em sua maioria réplicas, contudo um dos que mais espantou foi um pedaço de pedra.
Separado de mim por uma gaiola de vidro, a pedra de Nabucodonosor (o contexto dela está na legenda da primeira foto deste post) me fascinou. Eu não conseguia parar de olhar para ela. Sua beleza rivalizou com as centenas de bíblias expostas no museu - quase uma heresia minha, hein? A pedra do rei babilônico era um instrumento de poder, fazendo parte de um edifício que deve ter sido tão monumental quanto os que eu estava visitando na viagem de férias.
Fiquei encantado com a linguagem alienígena das inscrições cuneiformes: aqueles rasgões na pedra, como aquilo pode ter sido uma linguagem…? Aquilo que no meu olhar ignorante eram riscos aleatórios se revelou como uma língua há muito morta, o acadiano. Comparemos a imagem, a visualidade, desta língua e alfabeto no qual escrevo este texto para vocês, com o que vai inscrito na pedra. A diferença me revela não só uma humanidade em comum, com uma distância entre nós e os babilônicos de mais de 2.500 anos, como também uma amplificação da noção de humanidade, cuja complexidade e diversidade são reveladas nas línguas que, desde o alvorecer da nossa espécie, falamos e escrevemos. Unidade e diversidade no humano - tudo convergiu naquela pedra.
E o que sobrou, eu me pergunto, das glórias de Nabucodonosor?
Apenas pedaços de pedras como aquele...
Sim, um pedaço de pedra, no qual a memória do outrora glorioso rei é mantida sob cárcere dentro de um museu dedicado a duas religiões - Judaísmo e Cristianismo - que o odiaram profundamente.
Este é o último post desta newsletter que escrevo em Princeton.
Amanhã viajo para Nova Iorque, onde vou passar 9 dias numa mistura de férias/trabalho até voltar de vez ao Brasil. Espero que eu consiga escrever no quarto do hotel. Também vou começar a organizar as aulas da graduação.
Quanto a Princeton, há um sentimento bom da partida - já é hora de voltar para casa - misturado com alguma melancolia da separação. Foi ótimo estar aqui. Hora de seguir adiante.
Até próxima semana!
C.