Linguagem Guilhotina #17 - Erotismo - A poesia de Bocage
Apertem os cintos que lá vem safadeza!🔥
No final do ano passado, eu escrevi a orelha de um livro muito massa publicado pela Boitempo: a compilação da poesia erótica do poeta português Bocage, grande nome da poesia do século XVIII. Faz semanas que queria compartilhar o texto com vocês, então aqui vai. Ele também saiu no blog da Boitempo.
Quais são os limites, ou os critérios, que tornam um texto literário? O que significam os conceitos de bom ou de mau gosto nesse campo? Existem temas mais adequados ou menos adequados para a literatura? Da Erótica: muito além do obsceno, deliciosa reunião da poesia erótica de Manuel Maria de Barbosa du Bocage organizada de forma brilhante por José Paulo Netto, pode suscitar estes e outros questionamentos. Do sentimento amoroso idealizado ao mais obsceno, dos afetos, racionalizados como uma pedagogia dos sentidos, à mais crua das dimensões corporais humanas, a poesia do poeta português, grande voz da literatura do século XVIII em seu país, prova que tanto o sexo quanto o desejo estão entre os mais importantes temas da literatura.
E nada melhor que sermos orientados com precisão nesse encontro com um poeta distante de nós trezentos anos no tempo, mas ainda assim tão presente. Soma-se ao substantivo prefácio do escritor português Francisco Louçã uma introdução alentada à vida e à obra do poeta, elaborada por José Paulo Netto. Mais conhecido como ensaísta político, neste trabalho Netto retorna ao campo da crítica literária, no qual é igualmente voz de destaque. Seu estudo introdutório vem acompanhado de um arsenal de notas explicativas sobre a poética bocagiana e sobre outros temas que tangenciam seu universo. Como complemento, uma cronologia da vida e da obra do poeta português.
À literatura interessa tudo o que é humano. É a nossa humanidade, às vezes literalmente despida, que corremos o risco de encontrar sempre que lemos um conto, um romance ou um poema. E a poesia de Bocage é um elogio à liberdade do prazer.
Uma de suas maiores qualidades consiste em apontar as diferentes dimensões do desejo. Encontramos nela sexo explícito e descrito sem meias palavras. Há cenas de prazer solitário, outras de intensa imaginação amorosa, platônica, outras ainda que representam jogos de sedução entre enamorados. Em Bocage, o corpo desejante é turbilhão de emoções, excitação, ansiedade e – por que não? – crueldade. A trilha do desejo que seus versos sugerem nos conduz a um ponto de chegada: o da descoberta e da afirmação de nós mesmos, em plenitude.
Em tempos difíceis como os que vivemos, há mais de uma lição a ser aprendida com o erotismo escrito de um poeta do século XVIII. É o próprio Bocage quem nos avisa: “Então sentimos comoções insólitas,/ Que origem são dos males que te oprimem,/ Do amor que te domina, melancólico,/ Da forte agitação que em ti pressentes./ Mas tudo tem remédio, eu hei de dar-to;/ Feliz serás, se o trilho me seguires”.
Um dos maiores estudiosos do marxismo no Brasil, José Paulo Netto retoma em Da Erótica: muito além do obsceno, seu talento igualmente reconhecido de crítico literário. Na obra, além de selecionar e organizar o material, apresenta ao leitor, em um alentado ensaio, o universo da vida e da arte de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, autor português do século XVIII. Sua seleção e comentários destacam o aspecto libertino do controvertido poeta, sem deixar de ressaltar sua qualidade literária, cada vez mais reconhecida, que lhe garante lugar seguro entre os clássicos da literatura portuguesa.
A apresentação consiste assim em um ensaio de fôlego que estabelece uma linha histórica da literatura portuguesa da época, situando nela o poeta, sua vida e sua obra. E de quebra exibe, nas muitas notas de rodapé, uma profusão de informações por si só igualmente interessantes, compondo um variado e valioso painel. Complementam a edição uma cronologia relativa ao poeta português, referências bibliográficas e um útil índice onomástico.
“A compilação que José Paulo Netto organizou oferece os textos quiçá mais relevantes desse caminho, incluindo obras maiores da poética bocagiana, também alguns dos seus atrevimentos pícaros, discutindo nuns casos a autoria, noutros garantindo a origem, sempre comentando e ilustrando aqueles versos com notas detalhadas, sem as quais nos perderíamos no labirinto de alusões e diversões do poeta”, escreve Francisco Louçã no prefácio da obra.
Já Netto afirma em sua apresentação: “Penso que Bocage deve ser abordado, explicado e compreendido como um libertino […] – e notadamente sua erótica (mas não só ela), na sua essencialidade, como amostra privilegiada e mais expressiva da concepção libertina possível no Portugal da última década do século XVIII. Resumindo, tenho a erótica bocagiana como exemplar privilegiado e ímpar da literatura libertina portuguesa do seu tempo”.
Fruto de rigorosa pesquisa documental, Da erótica é uma seleção inédita dos poemas de Bocage, acompanhados de um texto de apoio que, ao mesmo tempo que o desvenda para o leitor, salienta sua inegável condição de autor clássico. A apresentação é também marcada pelo ineditismo, já que nunca antes a obra desse autor tinha sido objeto de uma apreciação marxista, algo que José Paulo Netto executa de forma brilhante ao mesmo tempo que apresenta uma seleção da produção bocagiana e um painel do ambiente e da época em que ela foi desenvolvida.
Um soneto erótico de Bocage
Neste soneto, eu identifico uma retomada de um tema fundamental da poesia lírica: o chamado ao amor. É um tema que me fascina e que encontramos presente nas tradições eurdita, popular, escrita, ou oral, da poesia. Ele é muito frequente em canções também, do rock ao brega, passando pelo samba e pelo sertanejo, por exemplo. No caso do soneto abaixo, Bocage retoma o tema do chamado ao amor a partir de dois registros: a) o baixo, mediante a reescritura do chamado ao amor pelo viés da pornografia; b) o satírico, no qual o sexo, com foco no corpo feminino, é um instrumento de denúncia da hipocrisia da sociedade através da exposição da vida sexual de mulheres de renome na história e na literatura. Um exemplo é a caracterização de Dido, personagem do poema épico latino Eneida, de Virgílio, chamada pelo texto “puta d’um soldado”. O soldado em questão é ninguém menos que o herói Eneias, protagonista do poema e por quem Dido se apaixona. O desfecho trágico desta paixão é um dos momentos mais importantes e mais lembrados da obra-prima de Virgílio; Bocage, ao fazer alusão ao episódio no registro pornográfico, retira toda a solenidade e dimensão trágica do original, reposicionando o episódio numa tradição libertina.
Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:
Dido fui puta, e puta d′um soldado:
Cleopatra por puta alcança a c′ròa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua pròa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Russia imperatriz famosa,
Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.
Com este post, a newsletter volta das suas férias. As minhas próprias férias continuam, porém vai dar para preparar alguns conteúdos da newsletter ainda antes de eu voltar para o Brasil, no começo de agosto.
Em relação ao conteúdo desta newsletter, pergunto: gostam de erotismo na literatura? Há limites para o que pode ser dito por ela? O que acham da poesia de Bocage? Se quiserem, me contem nos comentários.
C.
Muito bom saber deste livro. Obrigada por compartilhar :)
O erotismo na literatura só não é melhor que o erotismo em carne e osso. Grande abraço, leitura massa