Linguagem Guilhotina #15 (V.2) - Para que servem listas de melhores livros/leituras?
Nessa edição converso sobre listas de livros a partir Daquela Lista Polêmica.
Um fato literário recente esteve na boca do povo que ama livros: o New York Times lançou uma lista dos 100 melhores livros do século. A coisa logo se tornou a “treta da semana” em um meio, o literário e editorial, que tem mais tretas do que pode sonhar vossa vã filosofia.
O roteiro da polêmica nós já conhecemos: reações indignadas contra a lista; reações que fingiram, a fim de combater o imperialismo estadunidense, que a lista não existia; influenciadores fazendo maratona de leitura dos livros da lista e por aí vai.
É óbvio que eu não poderia deixar de dar pitaco sobre o acontecimento.
Por isso, a partir da lista do NYT, quero pensar: por que fazemos lista de “melhores” livros/leituras?
O mundo é injusto e eu me recuso a fazer listas, me recuso a avaliar as coisas, me recuso a hierarquizar Cristhiano!
Compreendo perfeitamente.
O mundo dos livros e o contingente de leitores, ao menos o contigente que se importa com listas como a do NYT, tende a ser mais progressista, de esquerda, e episódios culturais como esse dos 100 melhores livros mexem um tanto com nossa visão das coisas. Temos muito medo de contribuir para as injustiças do mundo e de alimentar a roda-viva do capitalismo, por exemplo. São receios muito justificados e deles eu partilho.
No entanto, acho que nós, que estamos mais à esquerda, precisamos entender o estado de contradição intrínseco a nossa própria posição no mundo, em especial se esta posição nos garante alguma cota de privilégios. Tenho pensado demais como a extrema direita deita e rola na nossa ansiedade por pureza política e nos melindres da nossa culpa. Tenho pensado bastante como há um certo ponto de partida de superioridade moral da nossa esquerda, igualmente. Acho que precisamos baixar um bocado a bola e entender que estamos sim sujos de existência.
Mas nem é este o ponto. Sei que você quer um mundo cultural mais justo, igualitário, no qual a maior diversidade de vozes possa ser ouvida de maneira legítima. No entanto, quero te dizer que há algo muito fascinante no tal do ato de leitura: ele é baseado em escolhas. E, se eu escolho, eu fecho caminhos, eu deixo coisas para trás, eu priorizo Isso em detrimento Daquilo.
Todo ato de leitura contém hierarquizações
As listas de “melhores” isso, “melhores” aquilo, são um desdobramento natural do ato de ler. Por mais generoso que seu coração seja, é simplesmente impossível que você valorize todas as suas leituras de igual forma. Você até, durante um tempo, pode impor ao seu gosto, em nome das Boas Intenções, uma valorização artificial a uma determinada leitura - mas eu te garanto que o tempo revelerá as nunces do quanto você gostou de verdade daquilo que leu.
Ler é baseado em duas dimensões: a racional e a afetiva. Por racional, quero dizer que você compilará e analisará as informações contidas em qualquer texto lido. Por afetiva, quero dizer que tudo lido por você gera uma reação emocional na sua sensibilidade. Aqui, a literatura entra. É que escritoras e escritores são os mestres em usar a palavra para causar impactos não somente em sua razão, como também nos seus afetos. É daí que o estético nasce, do impacto sensível da leitura em sua mente e em seu corpo, impacto este que pode ser tão profundo a ponto de tremer as bases do que nós guardamos bem recalcadinhos dentro do nosso Eu.
Assim como não há uma paixão igual a outra, não há uma leitura igual a outra. O estético garante que as experiências de leitura sejam complexas, peculiares, idiossincráticas. Se cada obra lida me proporciona uma experiência única, daí para eu comparar estas experiências é um pulo.
Isso não acontece só de obra em obra. Dentro de um mesmo livro, a sua recepção não é igual. Em livros como os meus, é quase automático que meus leitores/leitoras não gostem igualmente de todos os contos. “Quais seus contos favoritos?” - esta pergunta tão simples é natural entre leitores de livros de contos, por exemplo.
O mesmo se dá com os romances.
Vou dar dois exemplos de livros brasileiros muito lidos, muito comentados, muito amados e muito desprezados: Torto arado e Tudo é rio. No caso do segundo, de Carla Madeira, eu já escrevi por aqui que gostei do livro, apontando as suas qualidades e defeitos segundo minha perspectiva. Mas há capítulos que são melhores do que outros; além disso, existe uma carta no romance que considero um ponto fraco do livro. No caso de Torto arado, muitas pessoas que adoram o livro me relatam que ele, na visão delas, dá uma caída no seu terço final.
Qual o meu ponto? O ato de leitura não compara apenas a experiência de obras entre si. Na verdade, ele naturalmente tende a contrastar as idas e vindas da leitura ao longo da própria obra literária que está sendo lida.
O que você achou da lista do NYT, Cristhiano?
Acho dela o que acho de todas as listas: ela é só um convite à leitura. Ela é, igualmente, um retrato do tempo e da cultura a partir do qual nasceu. Ela é, também, um mecanismo para agitar o mercado. Não por acaso, a lista foi publicada perto do Prime Day, da Amazon. Será coincidência? Aqui no Brasil, livrarias e sites buscaram capitalizar com a lista de diferentes formas possíveis, por exemplo. Imaginem como foi nos Estados Unidos! E quem vai tirar a razão dos varejistas?
O “melhores” é aqui puro marketing. E tanto faz, para mim, que tenham votado 500 ou 10 pessoas: no final das contas, uma lista de melhores livros e leituras é pouco mais que um convite (à leitura) e um testemunho (das modas do seu tempo). Eu confesso que acho as listas divertidas, embora, assim como muitos de vocês, elas me irritem um tanto.
Quero dizer também que não devemos subestimar a lista do NYT só porque ela é americana. Os mercados editoriais em língua inglesa e em especial os EUA são bem hegemônicos e devemos prestar atenção em como eles se movimentam. Sabe Elena Ferrante? Sabe Murakami? Sabe Bolaño? Eles se tornaram autores bastante globais em boa parte porque tiveram a chancela dos EUA e da língua inglesa. Não, não gosto disso. Acho injusto, desequilibrado, empobrecedor. Mas é preciso entender a regra do jogo e lutar a partir deste conhecimento.
Também não é bom superestimar a lista do NYT. Anotei vários livros que quero ler; mas não vou ficar só nesta lista, nem acho ela incrível e glamurosa só porque veio dos Estados Unidos e de NYC. Até porque eu a considero uma lista muito "caipira”. Eu sinto que existe uma ansiedade de cosmopolitismo no nosso meio cultural brasileiro, o que torna muitos dos seus atores presas fáceis para o deslumbramento, quase como se fossem moradores de Manhattan desterrados nos trópicos.
Dos livros que conheço, há boas, às vezes ótimas, escolhas. Há livros que eu sempre quis ler; outros dois quais nunca ouvi falar, mas que em uma breve pesquisa me interessaram bastante.
Alguns pontos me chamam atenção nesta lista. Primeiro, ela é feita a partir do quintal de uma língua e de um país. A lista é bem autocentrada em seus próprios valores, obras e língua. Eu escutei dois podcasts com editores do NYT responsáveis pela lista e claramente eles sabem disso. Falam de “literatura traduzida” como uma categoria quase em si mesma; falam dela como convidados especiais para a mesa do almoço das letras. Só isso deve nos fazer relativizar bastante a lista.
Me chamou atenção o predomínio absoluto da ficção. Se você acha que a ficção morreu, que as narrativas no mundo contemporâneo não fazem sentido, talvez haja um recado importante a ser levado em conta. Porque o “júri” do NYT foi convidado a votar em “livros”, ou seja, cabia todo tipo de obra. E a ficção predominou! Para algué, como eu, que parcialmente ganha a vida contando histórias, acho muito acalentador este detalhe. A ficção continua central no mundo da leitura.
Há poucos livros de contos e, salvo engano, nenhum livro de poemas. Eu acredito que além da obsessão do mundo em língua inglesa com o romance, isso reflete uma maneira de consumir obras literárias curtas que não se centra tanto no livro em si. Isso é verdadeiro em especial para a poesia, em que tendemos a nos conectar mais com poemas do que com livros de poemas.
Quais livros você leu e quais sugere, Cris?
Na lista encontrei alguns livros muito bons, que me impactaram. Entraram obras que me influenciam como escritor e como pessoa. De todas, a que eu recomendo mais fortemente é esse livraço chamado Austerlitz, do escritor alemão W.G. Sebald. Eu durante anos busquei imitar Sebald. Claro que fracassei (e tenho fracassado em tanta coisa…). Então, se você me pergunta por um único livro da lista, não hesito em indicar esse, que é sem dúvidas uma das obras-primas do século XXI.
Abaixo, a lista dos que eu li e ao mesmo tempo recomendo, posicionados em ordem de preferência.
Dias de abandono, Elena Ferrante;
Os detetives selvagens, Roberto Bolaño;
Os anos, Annie Ernaux;
Manual da faxineira, Lucia Berlin;
Lincoln no limbo, George Saunders;
Fugitiva, Alice Munro;
A estrada, Cormac McCarthy;
Não me abandone jamais, Kazuo Ishiguro;
Fun home, Alison Bechdel;
A vegetariana, Han Kang;
Persépolis, Marjane Satrapi;
A quinta estação, N.K. Jemisin.
E quais você quer ler e estão na lista?
O primeiro com certeza é a Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen. Depois, sem ordem de preferência, eu destacaria os seguintes futuros desejos de leitura: Confiança, de Hernan Diaz, The underground railroad, de Colson Whitehead, Esboço, de Rachel Cusk, A fantástica vida breve de Oscar Wao, de Junot Díaz, Estação Onze, de Emily St. John Mandel, Septology, de Jon Fosse, Demon Copperhead, de Barbara Kingsolver, assim como os outros livros de Philip Roth e de Alice Munro citados na lista.
Escolhas
Desta forma, queridas leitoras e leitores, é a partir das nossas circunstâncias contraditórias que podemos agir no mundo da cultura. O agir parte das minúcias, dos pequenos atos da nossa vida cotidiana, e em seguida ecoa nas grandes questões políticas que nos movem. Busquemos sempre escolhas generosas, inclusivas e diversas, sem esquecer que somos eternamente os animais a dizer todos os dias: “isso, desta vez, não”.
Ainda sobre a lista do NYT, indico o que escreveu em sua coluna Página Cinco no UOL. O Globo fez uma reportagem bem boa sobre esse tema também e para ler é só clicar aqui.
E vocês, o que acharam da lista?
O que acham de listas de “melhores”, no geral?
Quais livros vocês leram, quais gostaram, quais querem ler?
Me contem nos comentários para a gente continuar a conversa.
Este mês estou cheio de conversas para ter com vocês, então é possível que agosto tenha mais edições do que o usual desta newsletter.
C.
Se fizerem uma Lista das Melhores Análises Daquela Lista Polêmica, essa daqui com certeza entra no topo do meu ranking!
"(...) no final das contas, uma lista de melhores livros e leituras é pouco mais que um convite (à leitura) e um testemunho (das modas do seu tempo)".
Texto maravilhoso.