Linguagem Guilhotina #10 (V.2) - O sentimento da catástrofe
Pego emprestado o título de um ensaio da escritora francesa Annie Le Brun para prestar minha solidariedade ao Rio Grande do Sul.
Esta é uma edição um tanto diferente, porque ela é composta por fragmentos de vozes. Tenho acompanhado com angústia e estupefação os recentes acontecimentos no Rio Grande do Sul. O que acontece com nossos irmãos e irmãs gaúchos é o momento mais extremo de uma série de eventos climáticos que acontecem há bastante tempo. Creio que o Brasil, apesar de sofrer os efeitos das mudanças climáticas há anos, se considerava imune a esses problemas. Nossa ingenuidade agora acabou em definitivo, embora a falta de caráter de certas pessoas, em especial do bolsonarismo, não.
Desde que surgiram as impressionantes imagens das enchentes no Rio Grande do Sul, tenho pensado em um ensaio da escritora francesa Annie Le Brun, publicado entre nós há alguns anos pela Iluminuras. Neste ensaio, Le Brun busca definir a essência da noção de catástrofe, bem como pensar as consequências das catástrofes para a imaginação humana e para a filosofia.
Deixo, portato, dois parágrafos do ensaio de Annie Le Brun, parcialmente publicado pela Folha de São Paulo. Em seguida, eu vou linkar e deixar três fragmentos de depoimentos escritos por três escritores gaúchos: João Varella, Irka Barrios e Julia Dantas. A partir de suas vozes, deixo minha total solidariedade diante de tanta dor e sofrimento.
É preciso narrar a catástrofe: primeiro, como testemunho; depois, como sonho desperto.
O sentimento da catátrofe, Annie Le Brun (fragmento)
“Imaginada ou real, a catástrofe possui a força prodigiosa de surgir como a objetivação daquilo que nos excede. É justamente por se desdobrar em arcobotante entre o real e o imaginário que ela continua nos atraindo como uma das mais belas linhas de fuga do espírito humano.
Aliás, não conheço infância digna desse nome que não tenha escalado massivos de trens descarrilhados, que não tenha navegado por rios de lava, que não tenha constituído um reino sobre cidades libertadas... O sentimento da catástrofe é, sem dúvida, a primeira figuração da fenda do imaginário no mais profundo de nós. Fenda constante, cujo desenho é uma forma de interrogar nosso destino, tanto quanto de responder a ele. Mas também um expediente paradoxal para enfrentar, tentando representá-las, as situações da mais extrema desordem ética.”
Guaíba x Guaíba: sobre perdas e esperança, por João Varella (fragmento)
“A relação de Guaíba (cidade) com Guaíba (rio ou estuário ou lago ou lagoa… uma massa de água polimorfa) é de mágoa. No passado, dizem os mais antigos, era um belo balneário. Minha geração não teve nada disso, só água insalubre que separava o interior da capital, a periferia do centro.
A relação Guaíba x Guaíba foi agravada. O Guaíba avançou por Guaíba, o bairro em que cresci virou água e barro. Um terço da cidade ficou submersa. Entre as pessoas que perderam tudo, minha mãe.
“Graças a Deus, foi só perda material”, manda a etiqueta. Sei que a intenção da frase é de cortesia, não se trata de desdém com o sofrimento alheio. Mas veja o caso da minha mãe, que estava em Curitiba no momento da cheia. Ela tinha murais com fotos minhas, do meu irmão, dos meus sobrinhos, de amigos. Recortes de jornal local, gato, artesanatos que ela fazia. Ficou apenas com a mala de mão que levou na viagem. Sim, perda material, mas só?”
Para ler todo o texto de João, é só clicar aqui.
De que matéria as pessoas são feitas?, por Irka Barrios (fragmento)
“ ‘Tia, parece que estamos naquele filme O impossível’, meu sobrinho disse no sábado, às seis da manhã, enquanto tentávamos vencer uma correnteza que atingia os nossos joelhos. O apartamento da minha irmã foi meu segundo refúgio após eu deixar minha casa na sexta às quatro da tarde. Não acreditávamos que a água atingiria O Fátima, bairro mais alto que A Rio Branco. Não só atingiu como veio com força. Com seu irmão de nove anos nas costas, meu sobrinho de quinze seguia na frente, eu e as mochilas no meio, e minha irmã (a mãe dos meninos) atrás auxiliando um homem que não sabia o que fazer com sua moto. Salvamos nossos corpos, as bagagens e a moto. Depois fomos ao encontro de meu companheiro, resgatado durante a manhã pelo barco da defesa civil. Nos momentos de maior perplexidade perdemos um pouco da razão, e acho que ele alimentou a ilusão de que sua presença dentro de nossa casa frearia a força do rio. Não deu, logo após a meia-noite de sábado, os ralos começaram a expulsar a água que também forçava entrada pelos vãos das portas.”
Para ler todo o texto de Irka, é só clicar aqui.
A casa alagada, por Julia Dantas (fragmento)
“Eu estou aqui para tentar colocar em palavras o que foi e o que está sendo viver essa coisa, mas há momentos que a linguagem não alcança. O melhor que eu posso fazer é dizer que se algum dia eu virar cineasta e fizer um filme de terror, essa cena estará lá: a água brota por entre as junções do piso de madeira em manchas escuras mínimas que rapidamente ganham tamanho e se espalham indiferentes aos panos e às folhas de jornal com as quais se tenta suprimi-las. Outra cena: a água começa a atravessar por baixo a parede compartilhada com a vizinha e a parede que nos separa da rua, e, pela primeira vez na vida, a mocinha do filme se pergunta o quão sólida costuma ser uma parede. Ela pensa que o apartamento desocupado da vizinha deve ter virado uma piscina e não quer acreditar que o seu vai ser o próximo. Horas depois, a mocinha pensa também na ingenuidade dos panos, das folhas de jornal, da barreira que tentou segurar meio metro de água. São pensamentos demais para um filme de terror, eu sei, eu não disse que seria um filme bom.
É que é uma imagem difícil de explicar. Penso nos vídeos bonitos de pequenas nascentes de água no meio do verde da natureza. Um vital presente da terra para a vida na superfície. Exceto que foi todo o contrário. Um pequeno nascedouro de horror no piso da sala, depois no quarto ao lado da cama, depois nem sabemos mais. Eu não tenho repertório imagético para isso.”
Para ler todo o texto de Julia, é só clicar aqui.
Solidariedade
Esta é uma newsletter de conteúdo predominantemente literário e editorial (com minhas angústias salpicadas aqui e ali) e, por isso, vou indicar links para quem quiser fazer doações para livrarias, editoras, autores, centros culturais, bibliotecas. Mas antes, eu quero falar de uma babaquice muito forte entre nós da esquerda: por favor, não seja vigia da solidariedade alheia. Não arrote arrogância dizendo, como vi aqui e ali, que não se deve “doar para o governo do Rio Grande do Sul”. Sabe o que seu discurso contra o Estado ou contra a política te faz soar? Como um bolsonarista imbecil, ou como um neoliberal cretino (as adjetivações são redundantes e servem como ênfase estilística, claro). Você é um neoliberal ou um bolsonarista? Então pare de ostentar virtude e hipocrisia. Ninguém é obrigado a doar a órgãos do Estado, ou do Rio Grande do Sul, mas ambos são instâncias válidas e podem ser contempladas.
Ok. Dito isso, aqui vão alguns links úteis:
A Nonada Jornalismo mapeou pontos de cultura e comunidades tradicionais afetadas pelas enchentes. Você pode ver a lista para doações aqui.;
O perfil do Instagram Onde pousam os livros mapeou editoras, livrarias e bibliotecas para as quais vocês podem fazer doações. É só clicar no perfil deles e conferir.;
Se você, como eu, curte quadrinhos (aliás, tá valendo falar mais de quadrinhos, acho), o site de jornalismo de quadrinhos Fora do Plástico fez uma lista bacana de iniciativas solidárias nessa área para quadrinistas gaúchos.
Espero que a semana seja leve e traga novos horizontes para todos nós. Por aqui, me preparo não só para lidar com ela, a semana tão corrida, como também para a chegada de mais um ano de vida. Sou um tenebroso taurino com ascendente em virgem, que completará 43 anos neste sábado dia 18/05.
Nos vemos em algumas semanas, pois estou focado na revisão do terceiro manuscrito do meu romance, bem como em dois contos por encomenda. Nesse meio-tempo, tentarei fazer pelo menos mais uma postagem em maio.
Aliás, fiquem atentos que em junho tem conto inédito meu circulando por aí. O título dele é “Anunciação” e falará dos fantasmas, reais ou metafóricos, de uma separação amorosa. Assim que sair, publicarei um trecho dele neste espaço.
Beijos,
C.