Linguagem Guilhotina #1 - Episódio Piloto
Algumas reflexões, uma entrevista com a escritora Débora Ferraz e uma dica de filme e de podcast!
Parla, 1982
Cildo Meireles
Granito, madeira e couro
125,00 cm x 50,20 cm
Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
Reflexão 1
Olá!
Este é o episódio-piloto da minha newsletter. Confesso a vocês que ainda estou tateando formatos e possibilidades por aqui. Enquanto digito isso, sinto uma liberdade que há muito não vivenciava. Quero dizer o seguinte: é comum escritoras e escritores falarem do pânico diante de uma tela de computador, ou diante de uma página em branco, não é mesmo? Mas há também uma espécie de vertigem disso - o vazio da página alimenta dentro da gente uma sensação de intensa liberdade, porque nos lembra que a imaginação literária torna tudo possível. Este sentimento, que julgo positivo, é o que sinto enquanto escrevo agorinha para vocês. O equilíbrio entre o que eu adoraria dizer e aquilo que cabe neste espaço é uma das minhas procuras para esta newsletter.
Reflexão 2
Muitos autores e autoras têm, como eu, criado novas newsletters. A quantidade se acentuou nos últimos meses e se junta a iniciativas pioneiras de gente que se comunica desta maneira com seu público-leitor há anos. Eu tenho comentado que o formato me parece reposicionar um fênomeno cultural importante da literatura contemporânea: os blogs literários. As newsletters são blogs, porém com um modelo de entrega de conteúdo mais adequado ao momento que a literatura em meios digitais vive atualmente.
Para quem não lembra, entre os fins da década de 90 e os primeiros anos dos anos 2000, nossa literatura passou a ocupar intensamente a internet. O resultado disso foi que escritores e coletivos de escritores criaram sites, revistas literárias e blogs. Eu mesmo tive vários deles e o meu mais longevo se chamava, justamente, Linguagem Guilhotina. Foi um momento importante, mas não sei até que ponto a memória desta época, como muitas vezes acontece com o mundo digital, não se desmanchou totalmente. Quem conhecer alguma pesquisa, em especial acadêmica, sobre isso, me manda, por favor. Reportagens sobre o tema também me interessam.
Por que os blogs literários entraram em decadência? Minha hipótese é que a queda dos blogs coincidiu com a ascensão e consolidação das redes sociais, principalmente o Facebook e o Twitter. Sim, jovens: o Facebook já foi A Rede Social Descolada. Todo mundo foi produzir conteúdo lá.
Então, qual é a proposta, Cristhiano?
Linguagem Guilhotina vai entregar em vossas caixas de correio virtuais, no mínimo mensalmente e no máximo quinzenalmente, entrevistas com pessoas que admiro, comentários meus sobre livros, arte, narrativas audiovisuais, games, e por aí vai. Também pretendo compartilhar dicas de podcasts, newsletters, revistas, livrarias, ou o que mais cruzar meu caminho e aparecer de interessante. Até sobre comida devo dar uns pitacos! Para quem não sabe, estou nesta estrada da literatura e da crítica há bastante tempo. Então, Linguagem Guilhotina vai de vez em quando republicar em especial a crítica literária que venho produzindo há anos, junto com notícias sobre minha carreira como autor e pesquisador e professor. Quero compartilhar aos poucos, igualmente, o primeiro ano de trajetória do Gótico Nordestino, livro que publiquei ano passado e que mudou um bocado a minha carreira. Muita gente se interessa pela caixa preta do processo de escrita de ficção, então isso vai passar por aqui também. Nesta caso, quero abordar algumas temáticas de modo bem concreto.
Por eu estar testando tudo é que, nas próximas semanas, você deve receber mais duas newsletters em pouco intervalo de tempo. Depois, o ritmo será mais espaçado, respeitando uma periodicidade mensal. Aceito sugestões! É só entrar em contato.
Entrevista - Débora Ferraz
“É verdade, por que estamos tão fascinados pela violência? Eu responderia isso de umas três formas diferentes. A primeira e mais curta é: porque somos covardes.”
A escritora paraibana Débora Ferraz é uma voz que me chama muita atenção na literatura brasileira contemporânea. Sempre que ponho o olho em algum texto seu, eu encontro um frescor na escrita, um ângulo surpreendente na sua abordagem da narrativa. Vencedora do Prêmio Sesc e do Prêmio São Paulo, Débora lançou ano passado, pela editora Caos & Letras, o ótimo livro de contos Ogivas, tema da nossa entrevista. Para 2023, ela lançará, pela DBA, seu novo romance, O sombrio coração da inocência.
1) Débora, quero pensar um pouco contigo sobre o título do seu livro. Por que Ogivas? Eu penso nos teus contos como narrativas, onde, com muita frequência, suas personagens estão numa situação-limite. O título simboliza uma tensão narrativa presente nas tuas histórias?
Sim. Nos contos há situações que estão “armadas” e prontas para explodir feito uma bomba. Mas há também um outro sentido neste nome: a forma de uma ogiva, ou o arco ogival, para mim é uma lembrança daquele ditado em latim: ‘ars sine scientia nihil est’ que, numa tradução bem grosseira, diria que arte sem ciência (e aqui falamos em ciência como sinônimo de conhecimento, de estar ciente) é uma arte nula. A catedral gótica que inaugura essa arquitetura é uma solução técnica, mas é também uma solução de arte. Gerou um resultado estético: podia ter vitrais. Neste formato, um arco sustenta o outro. E para mim é assim que estes contos funcionam em conjunto. Um não anula o outro. E um não acumula sobre o outro.
2) Embora eu já tenha lido outros contos seus, te vejo sempre mais no campo do romance. Você pode compartilhar conosco como é a transição entre a Débora contista e a romancista?
O romance é, sem dúvidas a forma narrativa mais natural pra mim. É o que acho mais fácil. Gosto de escrever muito, de ter tempo para desenvolver os personagens, os espaços nos quais eles transitam, construir atmosfera, escrever diálogos... Não tenho na minha caixa de ferramentas algumas habilidades-chave como criar frases de efeito, parágrafos de efeito... O meu texto ganha peso na medida que sobreponho camadas e eu gosto da repetição como efeito estético. Acredito que realmente armo bombas, pacientemente, em vez de dar socos (tomando de empréstimo a metáfora do Cortázar sobre o contista ganhar por nocaute). Quando vou para o conto, a escritora que eu sou não muda, então, com toda a paciência, eu apenas ponho uma etapa a mais: cortar. Cortar muito. Cortar tudo o que sobra. Tudo o que não ajuda a estruturar, tudo o que não aumenta a potência. Não minto que me dá bastante trabalho. Mas creio que vale a pena justamente por isso. Ironicamente, tudo o que a gente acha mais difícil é também aquilo que dá mais orgulho de fazer.
3) Gosto em especial do modo como você explora o sexo nas suas histórias. Poderia comentar a importância do sexo na sua escrita, assim como a importância de narrar o sexo e a sexualidade de uma perspectiva de autoria feminina?
Consigo dizer o ponto exato em que passei a pensar sobre isso e foi durante uma aula do doutorado na PUCRS. Na ocasião o professor, que era o Luís Antônio de Assis Brasil nos provocava sobre se havia mesmo necessidade de explorar o sexo nas histórias. O que há de novo nisso? O que ainda não foi dito? Qual a parte que ainda pode ser original? Ele estava certo em uma coisa: não há nada que tenha maior tendência a ser brega, ou apenas pornográfico. E ser só pornográfico é ruim porque como todas as matrizes do excesso (melodrama, pornografia e terror) se você só mexe com a camada superficial dos sentidos (chorar, se excitar ou gritar) você não toca o cérebro do leitor, você não consegue colocar ali um incômodo duradouro. Mas o drama conseguiu uma saída, o terror também achou um caminho para ir além do susto... Então uma colega Olívia Scarpari (também escritora) disse: Ainda não narraram do ponto de vista da mulher. Naquele momento pensei: sim, isso é verdade, tem algo por aí. E claro que voltei pra casa com o espanto deste desafio. O ponto de vista feminino do sexo abre um leque enorme para falar sobre a contemporaneidade. Sobre violência e impotência. Sobre vítimas, algozes e sobre o que acontece quando todo mundo troca os papéis.
4) Algo muito presente na literatura contemporânea brasileira, mas que desapareceu em anos mais recentes, é o uso da metalinguagem. Dois contos no teu livro me chamam atenção, porque a utilizam muito bem: “No fim” e “No fim 2”. Poderia falar de como eles foram escritos e como você vê a ficção que comenta a si própria?
Tive muito preconceito com contos metalinguísticos por algum tempo. Mas isso mudou por dois motivos. Primeiro: tenho uma suspeita, um tanto pessimista, admito, de que as pessoas que gostam de ler, que compram livros de literatura contemporânea nacional e que leem um livro depois do outro, (o chamado ‘leitor comum’), são, na verdade, também escritores. Eu sou uma escritora, e estou respondendo perguntas de outro escritor aqui, não é verdade? A leitura é um texto codificado que só existe quando o leitor resolve lhe dar vida em sua mente. De qualquer forma, se eu estiver certa em minha suspeita (tomara que não esteja) significa que o leitor e o escritor estão em uma bolha, como estão os filateístas, os colecionadores de bonecas de porcelana, ‘gente que tem hobby’ (como diria a personagem de Coetzee, no livro Verão), e isto é triste. Mas não é o fim do mundo. E há uma certa liberdade que vem daí. (Além disso, morei em Norwich por alguns meses e vi que os filateístas, colecionadores e as “gentes que têm hobby” acabaram achando meios de persistir e perseverar com suas lojas. Eles vendem para o mundo inteiro na internet). O que importa mesmo é que se mantenha a qualidade do que fazem. Num conto, metalinguístico ou não, o que importa é que seja um bom conto. Que ele seja verdade. E que esteja cheio das coisas que verdadeiramente me importam e não apenas uma caixa vazia de forma sem conteúdo. Que tenha aquilo que me tira o sono quando deito a cabeça no travesseiro à noite. É isso que eu vou sempre tentar fazer. É como acredito que podemos nos comunicar.
5) O tema da violência é onipresente em nossa prosa atual. Está presente no meu livro, assim como marca fortemente o teu. Por que estamos fascinados pela violência? O que a literatura busca ao utilizá-la?
É verdade, por que estamos tão fascinados pela violência? Eu responderia isso de umas três formas diferentes. A primeira e mais curta é: porque somos covardes. É uma resposta que considero verdadeira, apesar de incompleta. Então vamos mais adiante: estamos fascinados com a violência porque finalmente descobrimos que somos covardes. Esta violência que nos apavora e nos atrai no mundo, é um espelho e nosso espanto é o mesmo tem Victor Frankenstein ao olhar para seu monstro. Eu fiz parte disso? Eu tenho como combater isso? Somos ao mesmo tempo “duas pessoas de espíritos opostos: o leitor que deseja apedrejar o monstro e o leitor que sente a pedrada e chora a injustiça dela” — e esta frase é de Stephen King, tirada do ensaio Dança Macabra, que foi também de onde tirei a epígrafe que abre o Ogivas. Mas nesse caso acho que, como ficcionista, a pergunta acaba me interessando mais que a resposta. Já pensei tanto a respeito que acabei escrevendo um romance inteiro (O sombrio coração da inocência, que vai sair pela DBA neste ano de 2023). Porque no final das contas sempre acabo pensando um pouco como Amós Oz: sou capaz de concordar parcialmente com várias respostas diferentes sobre a mesma pergunta. O problema é que estas respostas, internamente, ainda discordariam entre si. Me sobra escrever as histórias.
Guilhotinagens
Um bom filme de horror para o fim de semana: Cerdita (Piggy), slasher espanhol para fugir dos terrorzão-padrão estadunidenses. Foi um dos filmes de horror que mais me agradou nos últimos meses e esteve em várias listas de melhores do gênero em 2022. Ainda vou escrever um pouco sobre ele por aqui.
Vocês sabiam que eu sou produtor de um podcast? Se chama Afinidades Eletivas e para 2023 estamos preparando uma temporada nova. Na pauta, cultura, política, judaísmo, filosofia, literatura. O último episódio fala sobre Golens e Jorge Luis Borges:
Muita gente, inclusive este que vos tecla, está lendo/relendo Proust, provavelmente devido às novas traduções recém-lançadas pela Companhia das Letras. No meu caso, passear por Proust está relacionado a um freela no qual me envolvi desde o ano passado. Quando for possível, falarei disto, é um projeto editorial muito massa. Uma leitora me passou no Instagram um belo ensaio sobre Proust escrito por ninguém menos do que Thiago Blumenthal, um grande amigo que, infelizmente, faleceu no fim de 2020. Brilhante editor e ensaísta, Thiago faz uma bonita leitura sobre o amor na escrita proustiana.
Por hoje é só pessoal! Gostaram? Sugestões de pautas? Me mandem mensagens.
Obrigado e até a próxima!
C.
Sempre bom te ler. Tô aqui tateando também. Beijos
Bem-vindo!