Nesta edição extra republico um conto escrito quando eu era bem mais jovem.
Pelas minhas contas, o conto tem duas décadas de idade, talvez um pouco mais. Ele foi das poucas coisas que, ao longo dos anos 2010, eu não sentia vergonha de ter escrito. Naquele tempo, eu achava que precisava ser um cosplay de Kafka (a ideia do conto, contudo, surgiu de uma cena do romance O outono do Patriarca, de Gabriel García Marquéz, porque eu também acreditava que devia ser o Gabo do Bairro de Bodocongó).
Reencontro no conto Banquete uma das temáticas mais recorrentes do meu trabalho como ficcionista: as relações familiares. Há dias, após uma longa conversa com uma amiga, este conto, já esquecido, voltou à minha mente. Eu o reproduzo com sutis correções e uma alteração significativa: retirei a marcação de gênero na voz narrativa.
Quando escrevi, seria inconcebível para mim não marcar o gênero da narracão. Hoje, isso parece esteticamente interessante, ao menos para Banquete. O conto foi originalmente publicado no meu primeiro livro de contos, Ao lado do muro, lançado, e peço perdão por isso, no começo do século XXI.
Banquete
Painho abriu a porta e me disse: esperamos você para jantar. Disse isso e saiu. Arrumei minha cama e depois desci as escadas. Meu quarto ficava no primeiro andar do nosso sobrado. Enquanto descia, eu largava sobre os degraus minha roupa. Minha numerosa família, que me fitava com olhos esbugalhados, se acomodava numa mesa larga com talheres de prata. Meu lugar não era ali: fui até a cozinha.
A cozinheira e a sua ajudante sorriram, me cumprimentaram e me deitaram sobre a mesa. A panela grande, cheia de água fervente, esperava por mim. A cozinheira disse que obedeceria ao meu desejo de me cozinharem com a receita especial que eu tinha inventado. Nela, manjericão, limão, pouco sal, além de ingredientes secretos.
Cozinharam-me. O cheiro do jantar invadiu a sala quando as criadas me colocaram, com uma maçã na boca e o corpo coberto de especiarias, sobre a mesa. A prata reluziu, os talheres estalaram. Por precaução, colocaram uma venda nos meus olhos.
Ao me provarem, alguns reclamaram do sabor, outros reclamaram do manjericão. Contrariada, a família empurrou os pratos até o centro da mesa e se recusou a comer.
Antes da digestão, a vingança.
"vão ter que me engolir"
Estou juntando uma grana pra comprar seu livro e fico muito feliz de poder ter acesso ao seu trabalho por aqui!! As relações familiares são pano pra manga. Muito obrigada!